Abril aconteceu em Portugal há 48 anos. Quase meio século depois, o país mudou, as gentes são diferentes, as prioridades alteraram-se. «Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades»: já no século XVI, Camões constatava a marca da passagem dos tempos.
A língua, como outros produtos humanos, não fica indiferente a esta ação do tempo e também ela é permeável às alterações e acompanha os novos tempos abrindo espaço a muitos fenómenos que a alteram, tanto no sentido positivo como no negativo.
Assistimos não só ao aparecimento de neologismos ou ao alargamento de sentidos de palavras já conhecidas, mas também ao aparecimento de modismos e de modas. Este último fenómeno leva a que, não raro, palavras e expressões se sobreponham a outras existentes na língua, anulando-as quase por completo e passando, em muitas situações, a ocupar quase plenamente o espaço da significação. Falamos de fenómenos que, não raro, contribuem para uma redução da oferta lexical e, indiretamente, conduzem ao empobrecimento da língua. Por vezes, raiam mesmo o idiotismo de linguagem porque contribuem para a cristalização de estruturas que se afastam da norma passando a ser usadas acriticamente por muitos falantes.
Em muitos casos, a comunicação social é o canal que contribui para divulgar e manter as palavras ou certas construções na moda. De tanto serem usadas, estas ficam disponíveis no léxico ativo e acabam por ter uma frequência de uso que assegura a sua divulgação e quase generalização entre falantes.
Nestes 48 anos de Abril, olhamos para a língua e assinalamos 48 palavras ou expressões que mostram o dinamismo da língua, sempre pronta a aceitar novas palavras. Não deixamos de referir, no entanto, outras que importaria corrigir, deixar de usar como únicas ou abandonar de vez:
1. Alavancagem. Palavra usada no mundo das finanças em expressões como «alavancagem financeira», para referir o aumento dos lucros de uma empresa, em particular através do aumento do financiamento privado. Esta expressão tem tendência a ser confundida com fundos de apoio.
2. «À séria». A expressão recomendada é «a sério».
3. Bascular. O verbo entrou na moda no léxico do futebolês depois de José Mourinho, treinador da Roma, usá-lo como metáfora para ilustrar uma movimentação específica num jogo de futebol. Designa «a concentração de jogadores de um flanco para outro»; ou seja, «fazer tombar o sentido do jogo todo para um lado.»
4. Brutal. Em usos coloquiais, o adjetivo que denotava algo «cruel», «violento», passou a descrever algo «fantástico», «espetacular», conquistando um sentido oposto ao original.
5. CEO. A sigla inglesa para Chief Executive Office, muito usada no chamado tecnocratês, eclipsou por completo o termo em português, de sempre: diretor-geral.
6. Conectividade. O substantivo estende-se do campo da informática, onde descreve a capacidade de se ligar a uma rede, para as relações humanas, onde descreve o vínculo que se cria.
7. Customizar. Numa tradução literal do verbo inglês customize, sobrepôs-se ao verbo personalizar, que tem vindo a substituir em muitas ocorrências.
8. Covidês. A covid-19 abriu espaço a um conjunto de neologismos lexicais e semânticos, que rapidamente se generalizaram: confinar, desconfinar, covid, covidário, quarentena…
9. Desde. Preposição erradamente usada em lugar da preposição de, em construções como «...fala desde Kiev».
10. «De encontro a». Construção já corrigida inúmeras vezes quando usada em lugar de «ao encontro de»; a primeira significa «dar um encontrão a», enquanto a segunda significa «concordar com».
11. "(Des)acórdos". Plural pronunciado erradamente com “o” aberto no plural (ó), quando deveria ser dita com “o” fechado (ô), tal como o singular.
12. Despoletar. Espoletar quer dizer «dar início», «desencadear», mas foi substituído nesta significação por despoletar, que significa exatamente o contrário.
13. Elencar. Com o significado de «colocar em elenco» tem vindo a ocupar o espaço de verbos como «listar», «relacionar», «enumerar» ou «catalogar».
14. Empoderamento. Tradução linear do anglicismo empowerment, usado para descrever as relações de poder na sociedade e a atribuição gradual de poder a um determinado setor.
15. Empreendedor. A par do termo empreendedorismo, com origem no inglês entrepreneur, usou-se inicialmente no mundo empresarial para designar aquele que cria ou seu próprio negócio e foi substituindo palavras como empresário/patrão. Alargou a sua significação à designação daquele que tem iniciativa.
16. Colaborador. Eufemismo que veio substituir palavras como «trabalhador», «empregado» ou «funcionário».
17. "Empregue". Particípio passado do verbo empregar, usado erradamente em lugar de empregado (tal como “encarregue”, em vez de de encarregado).
18. Energético. Tradução literal do anglicismo energetic, tem vindo, inadequadamente, a ser usado no sentido de enérgico.
19. "É suposto". Cópia da construção inglesa it’s supposed, que virou modismo, em vez de «supõe-se», «pressupõe-se», «espera-se que» ou «é desejável que».
20. Expectável. Designando «aquilo que é provável», este adjetivo tem ocupado por completo o campo de significação substituindo vocábulos como «provável», «possível», «previsto», «prenunciado», «esperado», «aguardado», «desejável», «almejado», «desejado», «ensejado», entre outras.
21. Evidência. A qualidade do que é «evidente», «claro», gradualmente, começou a ser usado com o sentido de prova judiciária.
22. Governança. Usado em lugar de «governo» ou de «governação».
23. "Há anos atrás". Redundância recorrente (o verbo haver inclui a ideia de passado, dispensando, por isso, o advérbio atrás).
24. Humanitário. Usado erradamente em vez de humano em expressões como «tragédia/ catástrofe/crise humanitária».
25. Impactante. Adjetivo que está na moda, no sentido de «causar impacto». Usado em lugar de «maravilhoso», «espantoso», «extraordinário», «impressionante», «grandioso», prima pela dissonância.
26. Implementar. Tradução do anglicismo implement, tornou-se um modismo usado em lugar de «aplicar», «desenvolver», «realizar», «implantar», «executar», «proceder», «promover».
27. Incumbente. Tradução literal do inglês, usada para designar «quadros de chefia».
28. Incontornável. Adjetivo recorrente para designar algo que não pode ser evitado ou esquecido. Muito usado em política, veio substituir termos como «importante», «relevante», «destacado», «essencial», «crucial».
29. Item. A influência da língua inglesa tem ditado que, por vezes, a pronúncia da palavra de origem latina se faça, incorretamente, com um acento inglês “aitem”.
30. "Jihadista". Opção ortográfica não conforme às normas do português, que deve ser substituída pela forma jiadista.
31. Linhas vermelhas. Metáfora tornada modismo para referir limites que não deverão ser ultrapassados.
32. Mandado. Confundido, não raro, com o termo mandato. Mandato acontece quando uma pessoa dá a outra poder para agir legalmente em seu nome; mandado é uma ordem escrita emitida por uma autoridade competente judicial ou administrativa).
33. Melhor. Trocado, por regra, por «mais bem». Melhor é o comparativo de bom e mais bem é o comparativo de bem.
34. Moral. Palavra cujo significado se tem estendido a todos os campos em que que se possa evocar algum tipo de ética ou mesmo estado de espírito: «moral da equipa».
35. Narrativa. Tornada modismo, a palavra deixou de ficar circunscrita à terminologia literária, passando para o campo da política, no sentido alargado de «discurso», «ponto de vista» ou «tese». Por exemplo: « A narrativa dos EUA não sobreviverá à derrota no Donbass».
36. Nível. Surge usado na construção «a nível de», que substitui «no que se refere a», «quanto a», «no que concerne a».
37. "ÓNU". Acrónimo pronunciado erradamente com a sílaba tónica no “o”, como se tratasse de uma palavra grave (ou paroxítona), em vez /onú/ , por ser uma palavra aguda ou oxítona. Outros recorrentes erros de prolação: "Féliks", "Nóbel", "Rónaldo" e "rúbrica".
38. Overdose: Anglicismo que se instalou na língua, que poderá ser substituído por «sobredose», por exemplo.
39. "PALOPS". Sigla erradamente pluralizada, tal como, entre outras igualmente corrente no espaço mediático: por exemplo, "ONGS", "TACS" ou “PECS".
40. Performativo. Outro modismo esta tradução do inglês, no sentido de «relativo ao desempenho».
41. Plafonamento. Neologismo do chamado economês (no sentido de criar um limite em descontos e subsídios), formado francês plafond.
42. "Precaridade". Pronunciação defeituosa de precariedade. Outros casos de haplologia (ou seja, de redução de sílabas): "competividade", "consticional" e "solidaridade".
43. Procrastinar. Verbo na moda, significando «deixar para depois».
44. "Realizar". Uso incorreto no sentido do inglês to realize («compreender»).
45. Resiliência. Com um uso cada vez mais generalizado, o nome ocupou o espaço de palavras como «resistência» ou «superação»...
46. Severo. Adjetivo que passou a ser usado com o sentido de «grave», palavra que vai caindo em desuso...
47. Viva!. De tão repetida esta interjeição de saudação, como que se eclipsou o uso do plural Vivam. Por exemplo, «Vivam os noivos!» (e não "Viva" os noivos!). Idem quanto aos casos de Vende-se/vendem-se e Aluga-se/alugam-se.
48. Voz off. Outro anglicismo que, não tendo correspondente em português, assentou arrais na nossa língua, tal como outros anglicismos da linguagem jornalística como voz over, the record, on e off.
Cf. "Coisas do Arco da Velha": Memória dos murais do pós-25 de Abril