Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Já vi o tema «meio-dia e meio» debatido noutros sítios, inclusive pelo Sr. José Neves Henriques e pela Sra. Carla Marques, mas não fiquei convencido com os argumentos usados.

Vou tentar expor a minha visão da melhor maneira.

Meio-dia designa uma hora específica: 12h00. A «hora 12» é feminino, o «meio-dia» é masculino; são sinónimos. Não é o único exemplo na língua portuguesa de uma palavra masculina composta por justaposição que designa algo feminino.

Eis outros exemplos: um amor-perfeito é uma planta/flor, um bate-boca é uma discussão, um ano-luz é uma distância, um pé-de-cabra é uma ferramenta. Pegando neste último, se se tiver uma quantidade de x,5 unidades (x objetos inteiros + metade de outro) o correto é dizer-se «um pé-de-cabra e meio» e não «um pé-de-cabra e meia [ferramenta]».

Existe concordância em género e a mesma verifica-se para termos femininos; «quatro sextas-feiras e meia» é correto, «quatro sextas-feiras e meio [dia]» é incorreto.

Ora, tendo em conta os exemplo anteriores, por que motivo dizer que «meio-dia e meio», quando se está a referir claramente a uma hora concreta + metade dessa própria hora (a hora 12 + 30 minutos, 12h30), é considerado gramaticalmente incorreto?

Não se criou uma exceção ao não se aceitar que meio está relacionado com o substantivo masculino «meio-dia», e se está a interpretar erradamente que alguém está a querer dizer “meio-dia e meio hora”? Não será este caso único onde o género implícito do objeto/conceito (neste caso, a hora) se sobrepõe ao género da palavra que o designa («o meio-dia»)?

Obrigado

Resposta:

Mantemos a posição de que a formulação correta é a forma «meio-dia e meia».

Antes de mais recordemos que os fenómenos de concordância ocorrem em função do género gramatical da palavra independentemente de ela designar uma realidade extralinguística com um género masculino ou feminino (o que só se aplicará com seres vivos, e mesmo assim nem todos). Deste modo, diremos «um papagaio simpático», fazendo a concordância no masculino, independentemente do seu género natural (neste caso, macho ou fêmea).

A relações de sinonímia, hiponímia, meronímia ou outras que a palavra mantenha com outras também não afeta concordância: diremos sempre «um amor-perfeito maravilhoso», independente de estarmos que pensar que estamos a referir uma planta ou uma flor.  

De igual modo, e pegando num dos exemplos apresentados pelo consulente, um «pé-de-cabra» é, de facto uma ferramenta, mas também poderá ser um instrumento. Todavia, não é esta relação de hiperónimo-hipónimo (classe-elemento) que vai determinar a concordância de meio na expressão «pé-de-cabra e meio». Esta concordância é determinada pelo elemento que está omitido, o qual não decidido individualmente por cada falante. Deste modo, em «pé-de-cabra e meio», a concordância de meio é feita com «pé-de-cabra», que é um nome masculino, sendo a expressão completa «pé-de-cabra e meio pé-de-cabra»1. É este facto que justifica o aparecimento do género masculino.

No caso da construção «meio-dia e meia», comecemos por recordar que «meio-dia» é um nome masculino que refere «a décima segunda hora, a que divide o dia em duas partes iguais»2. Repare-se que a palavra meio que segue este nome composto não é uma redução de «meio-dia». Trata-se, antes, de um adjetivo que incide s...

Pergunta:

Com o mesmo sentido de «Exceto isso», devemos escrever «Fora disso» ou «Fora isso»?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se do uso preposicional de fora, a que não se associa outra preposição, conforme se regista em vários dicionários, designadamente no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa:

«fora preposição antes de grupos nominais, pronomes ou frases infinitivas, indica: 1. exceção, restrição sinónimos exceto; menos; salvo Todos comparticipavam nas despesas, fora ele. Não via nada, fora as questões do trabalho. Não fazia nada, fora andar de um lado para o outro. 2. não inclusão sinónimos tirante Ele ganha bom dinheiro, fora as ajudas de custo

Pergunta:

Gostaria de saber qual o grau de correção das seguintes frases:

«Ele emendou "cada" para "casa"»;

«Ele emendou "cada" em "casa"»;

«Ele emendou "cada" com "casa"».

Muito obrigado!

Resposta:

Nenhuma das expressões corresponde ao uso normativo do verbo emendar.

O verbo emendar é usado como transitivo direto1, pedindo, assim, um constituinte com a função de complemento direto. Diremos:

(1) «Ele emendou o texto.»

(2) «Ele emendou as peças da bicicleta.»

Emendar também poderá ter usos intransitivos:

(3) «No decurso do jogo, o guarda-redes emendou.»

O verbo é usado com o sentido de «fazer alterações com o objetivo de eliminar defeitos ou erros; fazer emendas»2.

No caso em que se queira descrever uma situação de emenda associada à substituição, poder-se-á recorrer ao verbo substituir:

(3) «Ele substituiu cada por casa

Disponha sempre!

 

1. Cf. Malaca Casteleiro, Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editora.

2.Consultou-se o Dicionário da língua portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

 

N. E. (20/03/2025) – Segundo o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft, o ver...

Pergunta:

Um conhecido meu recebeu um email com a seguinte frase «O que faço com esta criatura?».

Não terá nesta frase a palavra criatura um caráter pejorativo?

Obrigado.

Resposta:

Tudo dependerá da intenção do locutor ao construir a frase.

De uma forma geral, o nome criatura significa «o que foi criado; coisa ou ser resultante do ato de criação, tudo quanto existe»1. É com este sentido que a palavra é usada em frases como (1) ou (2):

(1) «Somos criaturas de Deus.»

(2) «Qualquer criatura ajuda o seu semelhante.»

Não obstante, o termo pode ser associado a contextos que ativam sentidos depreciativos, como em (3), onde se mobilizam sentidos como «ser com atitudes pouco normais; ser desprezível»:

(3) «Esteve o tempo todo distraído. Não quero falar mais daquela criatura.»

Deste modo, se a frase em análise se associar a uma intenção crítica, o termo criatura poderá veicular sentidos pejorativos.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa. 

O verbo agrícola <i>engavelar</i>
O dito «Julho, debulhar. Agosto, engavelar»

 Esta semana, a professora Carla Marques trata o significado do verbo engavelar usado no dito  «Julho, debulhar. Agosto, engavelar», um apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, de 16/03/2025.