Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Devo felicitar-vos pelo excelente trabalho que têm vindo a fazer!

Tenho uma dúvida no que diz respeito ao complemento do nome referente ao nome retrato nos contextos seguintes:

1. O retrato da tua filha está perfeito.

2. O retrato que o artista elaborou está exposto na galeria.

Na frase 1, foi indicado que «da tua filha» seria um complemento do nome. Percebi a análise, visto que o nome retrato pode ser entendido como denotando uma representação visual ou gráfica e, ao retirar «da tua filha», o sentido referencial de retrato seria impreciso.

Contudo, na frase 2, a expressão «que o artista elaborou» foi considerada como modificador do nome restritivo. Sei que é uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva e sei que estas costumam ter a função sintática de modificador do nome restritivo. Todavia, o sentido referencial de retrato não ficaria impreciso se esta fosse retirada, dado que é um modificador? Se a frase fosse «O retrato da tua filha que o artista elaborou está exposto na galeria», entenderia muito melhor a análise... Que justificação pode ser dada para se considerar ambas as análises sintáticas corretas?

Posso inferir que, não importando o contexto, se aparecer uma oração subordinada adjetiva relativa, esta terá sempre, sem exceção, a função sintática de modificador do nome, mesmo que eu saiba que o nome possa exigir um complemento do nome (como alguns nomes deverbais: «A oferta da casa foi feita ao casal» vs. «A oferta que o casal recebeu foi uma casa»?

Obrigada pela vossa atenção!

Resposta:

Com efeito, nas frases em apreço, os constituintes sublinhados nas frases desempenham a função de complemento do nome (frase 1) e modificador do nome (frase 2):

(1) «O retrato da tua filha está perfeito.»

(2) «O retrato que o artista elaborou está exposto na galeria.»

No caso da frase (1), o constituinte «da tua filha» desempenha a função de complemento do nome porque completa o sentido do nome retrato, na medida em que este, sendo um nome pictórico (relativo à imagem), pede um argumento que indique quem (ou o quê) está representado no referido retrato.

No caso da frase (2), a oração subordinada adjetiva relativa não constitui um argumento do nome porque não informa sobre o conteúdo representado na imagem. Dá antes uma informação que, ao incidir sobre o nome retrato, restringe o seu significado. É essa a razão que explica a alteração de sentido que ocorre quando se retira a relativa da frase.

(2a) «O retrato está exposto na galeria.»

A relativa «que o artista elaborou» junta-se ao nome retrato e leva a que este passe a referir apenas um objeto que corresponde ao retrato feito pelo artista, assim excluindo todos os outros possíveis retratos. Por essa razão, o oração relativa é indispensável à frase para que ela mantenha o seu sentido.

Por fim, refira-se que, de uma forma geral, as orações relativas que se associam a um nome desempenham a função de modificador do nome (restritivo ou explicativo).

Agradecemos as gentis palavras.

Disponha sempre!

Pergunta:

Li num dicionário acerca da definição de antecedente o seguinte:

«termo a que se refere o pronome relativo

Esta definição está completa? Não se deveria incluir os pronomes pessoais?

Ex.: «Nos debates televisivos falou-se de muitos assuntos. Eles foram pertinentes para o meu conhecimento.

Obrigado.

Resposta:

No plano textual, a definição de antecedente é mais lata do que aqui se refere.

A noção de antecedente está relacionada com o conceito de «anáfora textual», que se integra nos processos de coesão textual. Um texto integra uma rede de relações semânticas, construída também com bases em processos anafóricos que constituem uma construção linguística por meio do qual um determinado grupo nominal faz depender a sua interpretação de um termo antecedente.

Este processo pode ser desenvolvido por meio de uma anáfora direta1, conceito que engloba os seguintes processos: anáfora pronominal, anáfora zero, anáfora nominal e anáfora adverbial. Todos eles envolvem a relação entre um grupo nominal (expresso ou não) e o seu antecedente.

A anáfora pronominal corresponderá à realidade que o consulente refere na sua questão. Este processo gramatical de construção da coesão é desenvolvido por meio de pronomes de vários tipos (pessoais, demonstrativos, possessivos, relativos), os quais estabelecem ligações coesivas com um termo antecedente, retomando o seu sentido.

Disponha sempre!

 

1. cf.  Lopes e Carapinha. Texto, coesão e coerência. Almedina, 2013.

Pergunta:

Na frase «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião», devo considerar «de avião» complemento do nome ou complemento oblíquo, uma vez que o verbo "fazer", neste contexto, é transitivo direto?

Resposta:

O constituinte «de avião» desempenha, na frase apresentada, a função de complemento do nome viagem.

A frase em questão tem a particularidade de incluir o uso de fazer como verbo leve. Considera-se verbo leve aquele que perdeu o seu sentido pleno, tendo sofrido um «esvaziamento semântico» e funcionando associado a um constituinte nominal1. Veja-se, a título de exemplo, um uso do verbo fazer como verbo leve associado ao nome intervenção:

(1) «Ele fez uma intervenção na reunião de professores.» (= «Ele interveio na reunião de professores.»)

Assim, «fazer uma intervenção» é uma construção equivalente a intervir.

No caso em apreço, «fazer uma viagem» é equivalente a viajar. Caso a frase incluísse este verbo pleno, teria uma forma similar à seguinte, na qual «de avião» é um argumento do verbo viajar, desempenhando a função de complemento oblíquo:

(2) «Nas últimas férias, viajei pela primeira vez de avião.»

No caso da frase aqui transcrita em (3), o constituinte «de avião» não é argumento do verbo fazer, como se constata pela agramaticalidade introduzida pela omissão do constituinte «a minha primeira viagem»:

(3) «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião.»

(3a) «*Nas últimas férias, fiz de avião.»

A agramaticalidade da frase (3a) está relacionada com o facto de o constituinte «de avião» ser um argumento do nome viagem, pelo que desempenha a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

...

Pergunta:

Podiam ajudar-e a confirmar se o constituinte «da comarca de arredores» é complemento do nome pessoas?

A frase é: «E recolherom-se dentro à cidade pessoas da comarca de arredores.»

Parece-me que é porque faz parte do sujeito, mas tenho dúvidas.

Obrigado pelo descanso que nos dão enquanto professores. Felicitações pelo vosso maravilhoso trabalho.

Resposta:

O constituinte «da comarca de arredores»1 desempenha função de modificador do nome com valor restritivo.

O nome pessoas é um nome autónomo, o que significa que não pede um argumento que complemente a sua significação. Deste modo, o constituinte que incide sobre o nome pessoas tem a ação semântica de restringir a sua significação, procedendo a uma especificação que leva a que o grupo nominal passe a referir apenas as pessoas oriundas da «comarca de arredores» e excluindo todas as restantes.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça e que muito nos estimulam.

Disponha sempre!

 

1. O texto apresentado é uma adaptação de um segmento da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, que aqui transcrevemos na sua forma original: «e colherom-se dentro aa cidade muitos lavradores com as molheres e filhos, e cousas que tiinham; e doutras pessoas da comarca d’arredor, aqueles a que prougue de o fazer [...]» (Fernão Lopes, Crónica de D. João ISeara Nova / Comunicação, 1980, p. 170)

«Sarampo sarampelo, sete vezes vem ao pelo»
Significado de um ditado do campo da saúde

Origem e história do ditado «Sarampo sarampelo, sete vezes vem ao pelo», pela professora Carla Marques.

(Programa Páginas de Português, da Antena 2, de 09/02/2024)