Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Queria perguntar-vos como se diferencia uma disjunção inclusiva de uma disjunção exclusiva. Por exemplo: «as escolas de ensino privado ou cooperativo com contrato de associação».

Se eu quiser dizer «OU escolas privadas OU escolas cooperativas com contrato de associação» (das duas, uma), devo colocar vírgulas depois de «privadas» e depois de «cooperativas»?

Se eu quiser dizer «as escolas privadas OU cooperativas com contrato de associação» (uma, outra ou ambas), devo colocar vírgulas antes do ou e depois de cooperativas?

Obrigado.

Resposta:

De um ponto de vista normativo, não está descrito o uso de vírgulas com orações disjuntivas para distinguir inequivocamente os seus valores.

De uma forma geral, a coordenação disjuntiva pode ter um valor inclusivo, o qual permite que apenas um dos termos se verifique. Em (1), o Pedro pode estar apenas zangado, apenas cansado ou ambos:

(1) «O Pedro está zangado ou cansado.»

A coordenação disjuntiva também pode ter um valor exclusivo, em que apenas um dos termos se verifica. Em (2), não será possível que a pessoa em causa calce, em simultâneo, chinelos e sapatilhas, pelo que apenas um dos termos se verificará:

(2) «Levo chinelos ou sapatilhas.»

Se quisermos reforçar a leitura inclusiva, poderemos usar uma expressão como ambos, que surgirá entre vírgulas:

(1a) «O Pedro está zangando ou cansado, ou ambas as coisas.»

Se pretendermos reforçar a leitura exclusiva, poderemos recorrer a expressões como «mas não ambos»:

(2a) «Levo chinelos ou sapatilhas, mas não ambas as coisas.»

Note-se que estas interpretações estão dependentes de fatores contextuais e do conhecimento do mundo1.

No caso da estrutura em análise, a leitura, por defeito, parece ser a inclusiva, ou seja, o que é dito aplica-se a escolas privadas, a escolas cooperativas ou a ambas. Não obstante, poderá existir conhecimento contextual que favoreça ou a leitura exclusiva, que aponta para o facto de a situação só se aplicar a escolas privadas ou, por outro lado, se aplicar a apenas a escolas cooperativas. Caso se tivesse em vista uma leitura exclusiva, poderia existir uma pausa antes da oração coordenada (acompanhada de uma ligeira inflexão da voz), marcada por vírgula2, como se verifica na frase...

Pergunta:

Qual a diferença entre «de facto» e «com efeito»?

Resposta:

Sendo usadas com a função de conectar frases, orações ou grupos de palavras, as expressões «de facto» e «com efeito» são normalmente equivalentes, tendo o valor de «efetivamente». Estas expressões são usadas comummente com um valor de confirmação ou de explicitação do que foi dito ou de um argumento:

(1) «Tinha fome. De facto/ Com feito, já não comia há horas.»

(2) «Estava feliz porque, de facto/com efeito, só ela sabia a resposta.»

Poderemos considerar que entre as expressões há ligeiras diferenças semânticas, que se prendem por exemplo, com o facto de a expressão «com efeito» se associar a um valor de consequência, que poderá nem sempre estar presente em «de facto». Todavia, referimo-nos a diferenças muito residuais, que, nos usos quotidianos, não se farão sentir de forma clara.

Note-se ainda que a expressão «de facto» pode ser usada com o valor de «que é real, que é efetivo», como nas expressões seguintes:

(3) «separação de facto»

(4) «união de facto»

Disponha sempre!

Pergunta:

Em relação à frase abaixo, o elemento destacado foi usado corretamente? «Ficou com dúvidas se estava a fazer o certo.»

Obrigado.

Resposta:

A frase apresentada não é aceitável do ponto de vista normativo.

O nome comum dúvidas regre uma preposição, que poderá ser de, em ou sobre (ou sinónimos):

(1) «Tenho dúvidas de que ele venha.»

(2) «Tenho dúvidas em ir ao cinema contigo.»

 (3) «Tenho dúvidas sobre a qualidade desta música.»

Quando o nome dúvidas é seguido de uma oração completiva introduzida pela conjunção que, a preposição de pode ser omitida1:

(1a) «Tenho dúvidas que ele venha.»

Ora, no caso da frase em apreço, poderemos verificar que estamos perante um caso de elisão da preposição sobre:

(4) «Ficou com dúvidas sobre se estava a fazer o certo.»

Pelo paralelismo com a possibilidade presente em (1a), poderemos afirmar que nos usos informais esta supressão da preposição tem lugar. No entanto, do ponto de vista formal, é aconselhável usar sempre a preposição para manter a estrutura sintática do nome dúvidas.

Alias, se analisarmos uma construção do nome dúvidas seguido não de oração mas de um sintagma nominal, confirmamos a necessidade da preposição2:

(5) «Ficou com dúvidas sobre a correção da sua ação.»

(5a) *«Ficou com dúvidas a correção da sua ação.»

Disponha sempre!

 

*assinala a agramaticalidade da construção. 

 

1. Cf. Celso Luft,

Pergunta:

Em relação à frase «Sem os médicos, ninguém era saudável e "não" tinha uma vida normal», perguntava-vos se a mesma pode ser considerada correta.

Obrigado

Resposta:

A frase em apreço não está correta.

Neste caso particular, o pronome indefinido ninguém é sujeito das duas orações coordenadas:

(1) «Ninguém era saudável.»

(2) «Ninguém tinha uma vida normal.»

Isto significa que, em cada uma das frases, se afirma que a situação descrita não se verifica para nenhuma pessoa existente. Ora, se, na segunda oração, se introduzir o advérbio de negação não, este sentido altera-se, como se comprova com a frase (3):

(3) «Ninguém não tinha uma vida normal.»

Em (3) afirma-se que não existe nenhuma pessoa que não tenha uma vida normal, ou seja, todos têm uma vida normal, o que é exatamente o contrário do que, à partida, se pretende afirmar. Esta significação ativa-se porque as duas palavras negativas seguidas anulam o sentido negativo da frase, que passa a ser afirmativo.

Note-se, todavia, que é possível a concordância negativa em frases iniciadas poro, como em (4)1:

(4) «Não conheço ninguém aqui.»

Desta forma, a construção correta da frase será a que se apresenta em (4), na qual a coordenação copulativa é assegurada pela conjunção nem, que assinala a adição com valor negativo, conexão que o adverbio de negação não não consegue assegurar.

(4) «Sem médico, ninguém era saudável nem tinha uma vida normal.»

Disponha sempre!

 

1. A este propósito, ver também esta resposta

Fazer aquilo de que gosta
Relativa sem antecedente com preposição

Por que razão estão incorretas as frases «*Ele faz o de que gosta» e *Ele faz o que gosta»? E como corrigi-las? A professora Carla Marques aborda a questão na rubrica semanal divulgada no programa Páginas de Português, na Antena 2 (de 27 de abril de 2025).