Prezado Coordenador do Ciberdúvidas:
O gramático Fernando Pestana e o linguista Aldo Bizzocchi acusam alguns dos principais linguistas brasileiros de desonestidade intelectual, mas o fazem em artigos inquinados desse vício. Tenho consciência da gravidade desta crítica, proporcional, todavia, à gravidade dos seus ataques à reputação de colegas.
Depois de recorrer ao INAF 2024 para coonestar preconceitos difundidos nas sociedades brasileira e portuguesa, sintetizados no lugar-comum «os brasileiros não sabem falar português», Pestana remata o seu último artigo com uma exortação a todos os acadêmicos e um repto aos linguistas atacados. A exortação: «Todos aqueles que estão no ambiente acadêmico devem, com honestidade intelectual, questionar os critérios dos linguistas brasileiros supramencionados.» O repto: «Estaremos vivos para ver os linguistas brasileiros que consideram 'norma culta' a produção linguística de 77% abaixo do nível proficiente de leitura fazerem um MEA CULPA e dizerem que os seus critérios de 'pessoa culta' são insustentáveis e flagrantemente errados?»
Como sabe todo falante nativo de português, uma pergunta iniciada com «estaremos vivos para ver» é retórica e sugere uma resposta negativa. O repto serve, portanto, como reforço à exortação, para abalar a confiança do auditório de Pestana na competência e na honestidade dos seus alvos. Não há volta a dar: o gramático extrapola os limites da crítica fundamentada, dentro dos quais se manteria, caso se limitasse a propugnar o exame rigoroso dos critérios de quaisquer estudos.
Os seus outros textos têm o mesmo tom, até polido se comparado ao dos publicados pelo linguista Aldo Bizzocchi no seu blogue pessoal, Diário de um linguista, onde chega a acusar os seus colegas de publicar mentiras. O linguista Ricardo Cavaliere defende a mesma tese, porém dignamente, sem apelar para semelhantes expedientes, como poderá verificar quem ler a série de artigos intitulada "Norma linguística e inclusão social", reproduzida na rubrica Lusofonias. Os três articulistas alegam, sucintamente, a impossibilidade de deduzir a norma culta dos usos altamente frequentes na escrita dos brasileiros com graduação, pois estes seriam incultos, devido à deficiência da sua formação.
Os dados do INAF 2024 seriam uma prova cabal dessa tese. O Brasil seria uma terra arrasada, povoada de analfabetos e semianalfabetos, a cujas habilidades linguísticas limitadas não conviria amoldar a norma culta do português brasileiro. Trata-se de um exagero, cujo tamanho será mais fácil dimensionar pela comparação indireta entre os resultados do Brasil no INAF e os de Portugal no Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos (PIAAC) da OCDE. Comparação indireta, porque as duas avaliações dão definições diferentes a cada grau de literacia.
Felizmente, esta limitação não nos impede de pôr a descoberto a inanidade da argumentação de Pestana, pois, para tanto, basta demonstrar o erro ínsito a esta sua premissa: se 77% dos brasileiros com formação universitária não são proficientes em leitura, não podem ser parâmetro para a definição da norma culta. Pois bem, se exigirmos aos adultos portugueses o mais alto nível de proficiência em leitura para os considerar proficientes, menos de 4% o seriam, pois esta é a soma dos percentuais dos dois níveis mais altos no PIAAC 2023. Caso se admita, por condescendência, chamar proficientes aos adultos portugueses nos três níveis mais altos, chegar-se-ia a 24%. Noutras palavras, estão na metade inferior da escala de proficiência em leitura 76% dos adultos portugueses, dos quais 42% se situam nos dois níveis mais baixos. Pestana se referia, contudo, aos adultos brasileiros com ensino superior. Infelizmente, os relatórios do PIAAC 2023 não informam a distribuição percentual dos portugueses da mesma coorte ao longo de cada um dos seis níveis da escala, mas trazem o percentual para os dois níveis mais baixos: 15%. Os brasileiros com graduação são 14% nos dois níveis mais baixos da escala do INAF. Independentemente da impossibilidade de transpor os resultados de uma escala para a outra, poderemos atribuir à distribuição dos portugueses com ensino superior uma curva comparável à dos brasileiros. Portanto, os portugueses com grau universitário não seriam tampouco guias confiáveis, se interpretarmos os seus resultados no PIAAC 2023 à luz da premissa de Pestana, conforme a qual somente a escrita dos situados no nível mais alto de proficiência deve servir de parâmetro para o estabelecimento da norma culta. Portugal seria, assim, uma terra arrasada, povoada de analfabetos e semianalfabetos, a cujas habilidades linguísticas limitadas não conviria amoldar a norma culta do português europeu.
A absurdidade da conclusão deduzida de tal premissa não afeta a argumentação de Pestana e Bizzocchi, por propugnarem, de fato, uma norma culta apoiada no cânone literário, mas afeta a posição do Ciberdúvidas: se, na sua fase inicial, os seus consultores eram sobretudo gramáticos tradicionais, cujas respostas às dúvidas dos consulentes pouco se afastavam desse cânone, na sua fase atual, eles são linguistas, cujas respostas também vinham considerando, na avaliação à gramaticalidade das construções, a frequência delas na escrita de brasileiros e portugueses com maior escolaridade.
Desde a entrada de Fernando Pestana no quadro de consultores, as respostas aos brasileiros já não consideram a frequência um critério adequado à avaliação da gramaticalidade. Desde então, a gramaticalidade dos usos de portugueses e de brasileiros tende a ser avaliada conforme métodos muito diferentes entre si: o da linguística e o da gramática tradicional, respectivamente. Não se reprovará aos portugueses a mistura pronominal entre vocês e vos, vosso, mas se reprovará aos brasileiros a mistura pronominal entre você e te, teu; não se reprovará aos portugueses o emprego de si e consigo não reflexivos, inexistente em qualquer outra língua românica, mas se reprovará aos brasileiros a próclise em início de frase, existente em todas as outras línguas românicas; não se reprovará aos portugueses o estranhíssimo sujeito expletivo em «ele há», mas se reprovará aos brasileiros o uso multissecular de ter existencial, resultante da também multissecular concorrência entre haver e ter no português.
Afeta a posição do Ciberdúvidas a incompreensão do busílis na discussão brasileira sobre a norma culta: em comparação com o conservadorismo dos gramáticos tradicionalistas brasileiros, o dos seus colegas portugueses passa por progressismo.
Comentário do jurista Miguel Faria de Bastos ao artigo Anatomia e genética dos Khoisan, publicado originalmente no Jornal de Angola, do dia 21 de agosto de 2024 — e transcrito aqui.
Gostaria de agradecer o serviço prestado pelo Ciberdúvidas.
É muito importante o vosso trabalho na defesa da língua portuguesa. É de facto um trabalho meritório, e por isso desejo-vos longa vida.
Gostaria ainda de dizer que todos os fins-de-semana ouço o programa na Antena 2. É um prazer conhecer o trabalho que é realizado em Portugal e nos restantes países de língua portuguesa em prol do idioma.
A expressão «velho e relho», a partir do étimo relho e respetivos significados... bem curiosos.
Apontamento do jornalista e escritor português Carlos Coutinho, transcrito, com a devida vénia, da sua página no Facebook, com a data de 27 de novembro de 2023.
«As razões editoriais para publicar um insulto racista, por exemplo, devem ser cuidadosamente ponderadas, apesar de ainda infelizmente termos o desprazer de assistir a esse assalto aos valores democráticos, que é o racismo, sobretudo na sobre-excitação do foco mediático em reacção pavloviana à extrema-direita em assinalar qualquer declaração que permita mais clicks.»
[João Manuel de Oliveira, investigador em estudos de género, ISCTE-IUL, in Cartas ao Director, “Público”, 26/07/2023]
"Evidência”, em vez de prova, "crítico" no lugar de crucial, "escalar" no sentido de intensificar/aumentar, “humanitário” quando deve ser humano exemplos da «canibalização do português pelo inglês» apontados por um leitor do jornal Público*, Eurico de Carvalho.
*Cartas ao diretor, 22/06/2023. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.
Olá, sou um tradutor brasileiro de 27 anos e só gostaria de agradecer brevemente pela existência deste site.
Tenho aprendido e tirado diversas dúvidas através de suas respostas incrivelmente detalhadas e das perguntas pertinentes dos leitores. Como trabalho com linguagem, aprecio e respeito profundamente o trabalho de vocês.
Muito obrigado pelo esforço que empenham.
Um grande abraço do outro lado do Oceano Atlântico.
Estou finalizando minha dissertação de mestrado, que estou escrevendo em português brasileiro (sou brasileiro). Porém, minha orientadora corrige algumas palavras e alguma ordem de frases para o português europeu (mesmo quando se trata de uma citação direta de autor brasileiro).
Qual a melhor forma de argumentar com ela que posso entregar meu trabalho escrito em português brasileiro?
Caro Barata-Feyo,
Obrigado pela sua chamada de atenção, neste Dia Mundial do Português. Tem toda a razão e o Público continua de parabéns pela sua incansável – e infelizmente inútil, teme-se – luta pela língua, falada e escrita.
Mas… santos de casa não fazem milagres, e numa primeira leitura rápida do jornal deparei-me logo com um erro de Português. Na coluna “Ex-chanceler alemão Schröder abandona petrolífera estatal russa” [20/05/2022] lê-se a dado passo: «[... o Parlamento Europeu pede aos Estados-membros da União Europeia para alargarem as sanções económicas...] a personalidades políticas europeias que estão a ser pagas para promover…»
«Estejam», não «estão»! O conjuntivo está a desaparecer, e grande parte da culpa é dos jornalistas – em menor grau os do Público, entenda-se –, que contribuem activamente para a ignorância generalizada.
Elysio Correia Ribeiro, Lisboa
[N. E. – Carta ao diretor do Público, 22/05/2022, na sequência do artigo "O Dia Mundial do Portinglês", que o jornalista José Manuel Barata-Feyo assinou no referido jornal em 21/05/2022.]
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
Se pretende receber notificações de cada vez que um conteúdo do Ciberdúvidas é atualizado, subscreva as notificações clicando no botão Subscrever notificações