Comemorámos há pouco o 29.º aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974. O que mudou no léxico da língua portuguesa com o 25 de Abril?
Alguns preliminares
Todas as línguas se caracterizam pela mudança. Quando uma língua deixa de mudar, morre.
Ora, para entender a mudança linguística é preciso entender os níveis a que ela se processa, que é quase o mesmo que dizer que é necessário diferenciar os tipos de saber envolvidos no nosso conhecimento da língua.
O conhecimento da língua é composto, entre outros, por saberes muito estruturados, como sejam o conhecimento sintáctico, o conhecimento fonológico, o conhecimento morfológico, mas também por outros tipos de conhecimento menos estruturados, como sejam o conhecimento lexical e o conhecimento pragmático.
Um período de quase trinta anos não é suficientemente longo para determinar mudanças estruturais numa língua, embora alguns autores apontem já para algumas tendências de mudança – cf., por exemplo, a perspectiva de João Peres e Telmo Móia, em Áreas críticas da língua portuguesa.
Pelo contrário, sendo os conhecimentos lexical e pragmático menos estruturados, as mudanças a estes níveis são mais evidentes, também por estas constituírem as componentes do saber linguístico que, de forma mais evidente, permitem a ancoragem entre a língua e a realidade extralinguística.
Desse modo, é natural que o léxico e a pragmática da língua portuguesa tenham sido profundamente afectados pela Revolução de Abril.
No que respeita à pragmática, isto é, ao uso da língua, a diluição das barreiras, tão rígidas outrora, entre os membros dos diferentes estratos sociais levou a mudanças significativas. Sem querer entrar em pormenores, porque o principal objectivo deste texto é falar do léxico, lembrem-se, no entanto, algumas mudanças que se verificaram nas formas de tratamento: maior emprego de tu e você, a passagem de expressões antes marcadas como pertencendo a registos muito descuidados do uso da língua (calão) para a linguagem familiar (chato e chatear, por exemplo), ou a utilização desenfreada de alguns bordões linguísticos (suponho que a todos chama a atenção, ao assistir a reportagens da época, a frequência com que o bordão pá! era usado naqueles dias pós-revolucionários).
Ao nível do léxico, também, as mudanças foram grandes. Sem ter procedido a um levantamento exaustivo (que implicaria um trabalho de pesquisa sobre produções linguísticas do antes e do depois de 1974), destaquem-se apenas três áreas mais salientes ao nível da mudança lexical.
O vocabulário político e social
As mudanças mais claras e mais rápidas que a Revolução trouxe foram a mudança no sistema político, a instauração da democracia e a liberdade de expressão.
Termos como Liberdade, Democracia, Socialismo, Comunismo, sociedade sem classes, igualdade, antes usados mais ou menos clandestinamente, passaram a andar nas bocas de toda a gente. Com isto não se quer afirmar que estes termos “não existiam” em Português antes de 1974, mas, sobretudo, que os seus índices de frequência dispararam de um dia para o outro, isto é, que palavras de uso restrito passaram a fazer definitivamente parte do vocabulário corrente dos portugueses.
Mas outras novas unidades lexicais foram criadas, sobretudo para dar nome a acontecimentos, grupos e movimentações específicos da nossa revolução: Revolução dos Cravos, Movimento dos Capitães e MFA, Movimento das Forças Armadas, Junta de Salvação Nacional, por exemplo, foram termos que surgiram logo nesse dia 25.
Mas não podem, ainda, deixar de ser referidas as inúmeras siglas que então surgiram no nosso vocabulário, tais como o PREC ou as UCP [Por curiosidade, consulte-se o dicionário em linha de siglas referenciadas nos documentos do Centro de Documentação 25 de Abril.
De referir, ainda, todo o vocabulário relacionado com temas discutidos profusa e abertamente na época, e não antes, tais como o divórcio, o aborto ou interrupção voluntária da gravidez, a liberdade religiosa, a reforma agrária, o cooperativismo, o sindicalismo, as nacionalizações, o regime de autogestão em empresas e escolas, os blackouts, etc.
Os neologismos de facto e os termos científicos e técnicos vulgarizados entravam em catadupas na língua portuguesa corrente por estes dias, em virtude das muitas notícias que então podiam ser veiculadas na comunicação social e do clima de desassombro que então se vivia.
O vocabulário da descolonização
Uma das consequências do 25 de Abril foi o fim da Guerra Colonial e a descolonização, com o regresso dos portugueses, não já à metrópole mas a Portugal Continental, portugueses que moravam naquilo que deixou de ser o Ultramar português para passar a constituir as ex-colónias e, mais tarde, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, também conhecidos como PALOP (Esta palavra viria também a tornar-se polissémica, denominando, com a forma palop(e)s, cada um dos naturais desses países, tendo, porém, este uso um conteúdo marcadamente pejorativo).
Os portugueses que regressaram das ex-colónias, os chamados retornados [ou espoliados do Ultramar, como se autodenominam os ideologicamente mais próximos da extrema-direita], trouxeram consigo usos e costumes que, em maior ou menor escala, viriam a instalar-se no quotidiano dos portugueses. De entre estas contribuições, refiram-se todos os africanismos e asiatismos [tendo em conta os muitos indianos vindos principalmente de Moçambique], que passaram a fazer parte da língua corrente em Portugal, dos quais se podem referir, por exemplo, no domínio da gastronomia: moamba, cachupa ou catchupa, mancarra, moqueca, fuba, óleo de palma e de coco, chamuça, sarapatel, entre muitos outros.
As formas femininas dos nomes das profissões
A Revolução de Abril de 74 trouxe, ainda, o princípio da não-discriminação e a consolidação do princípio da igualdade da mulher. Consequentemente, muitas actividades profissionais até então vedadas às mulheres passaram a poder ser também desempenhadas por estas, colocando problemas na designação feminina de alguns profissionais.A primeira juíza portuguesa surgiu depois da Revolução e também as primeiras titulares de cargos governativos (ministras, primeira-ministra, deputadas, presidentes de câmara, vereadoras). Mas a feminização das profissões foi muito mais longe: hoje temos empresárias, carteiras, motoristas, pedreiras, desenhadoras, operadoras de máquinas, engenheiras, cirurgiãs, etc. E que dizer da entrada das mulheres nas fileiras das Forças Armadas e de todas as dúvidas e problemas denominativos que esse facto acarretou?
A feminização de muitas profissões levantou e ainda levanta problemas lexicais e morfológicos interessantes e são, ainda hoje, alvo de discussões.
Em suma
Todas estas mudanças vocabulares mereceriam um trabalho muito mais pormenorizado e orientado por directrizes científicas, que não pôde agora ser levado a cabo. Porém, estas notas permitem chamar a atenção para um facto linguístico de inegável importância: se é através do léxico, particularmente através das chamadas palavras lexicais ou plenas (principalmente substantivos, adjectivos e verbos) que se denominam as realidades que nos rodeiam, é natural que, em épocas de grandes mudanças sociais, políticas, culturais, o léxico e a própria língua evoluam rapidamente, nomeadamente pela incorporação de inúmeras unidades neológicas.
Deste modo, não deve causar-nos estranheza que o 25 de Abril tenha desencadeado um tão forte fenómeno neológico na língua portuguesa.