A palavra narrativa serviu, durante inúmeros séculos, para descrever o ato de relatar situações reais ou reais ou ficcionais, o que não espanta se pensarmos que, etimologicamente, vem do verbo latino narrare («contar», «relatar», «narrar»).
Este sentido estendeu-se à referência à obra literária em prosa. Neste âmbito, a narrativa tem elementos próprios: um narrador (a voz que conta a história), uma ou mais personagens, um espaço e um tempo e, claro, uma ação que se desenrola em diferentes fases. Este é o sentido que ancora a palavra narrativa no campo da teoria da literatura.
Todavia, mais recentemente, no discurso mediático, o nome narrativa começou a ser usado como um modismo, tendo a sua significação resvalado para outras esferas. O processo de transformação terá conquistado visibilidade com uma famosa entrevista dada pelo ex-primeiro-ministro português José Sócrates à RTP, em 2013. Afirmava ele que queria contrariar uma «narrativa» incompatível com a sua visão dos factos aludidos então: as «narrativas» dos seus adversários e os embustes da «narrativa» da direita.
A palavra narrativa ganhou naquele contexto o sentido de «intriga», de «enredo ficcional» e, mesmo, de «mentira». A partir daí, conquistou asas e voou, transformando-se numa espécie de palavra genérica, que se usa para tudo, quase equivalente à palavra coisa.
Há uma mentira. É uma narrativa!
Alguém apresenta um raciocínio. Faz uma narrativa!
Ele tem muita lábia. É bom na narrativa!
Eles divulgam um conjunto de propostas. Apresentam a sua narrativa!
Eles defendem a sua visão dos factos. É a sua narrativa!
Ele contou o que disse na conversa que teve. Falou da sua narrativa!
À narrativa parece ter acontecido o mesmo que ao adjetivo incontornável: caiu nas mãos de uma turba furiosa que a espoliou, deixando-a à mercê de quem passa.
Não merecerá a narrativa recuperar a sua honra?