DÚVIDAS

Ainda o contraste entre «ao encontro de» e «de encontro a»

Acerca das várias respostas dadas pelo Ciberdúvidas sobre «ir ao encontro» vs «ir de encontro», gostava de vos expor este meu raciocínio de mera intuição linguística.

Eu ir de encontro a alguém na rua é dar-lhe um encontrão, é ir contra ele. Não há qualquer dúvida quanto a isso. Agora «ir de encontro» ao que o alguém pensa ser «ir contra» o que essa pessoa pensa já me parece ser uma transposição demasiado literalista de uma expressão usada no plano físico, transposta abusivamente e com o mesmo sentido para o plano das ideias. Até porque as ideias não andam aos encontrões umas às outras...

Sinto o «ir ao encontro» e o «ir de encontro» ao que alguém pensa como expressões de valor equivalente. O «ir ao encontro» implica um percurso, um caminho, algo mais lento, o «ir de encontro» ao que alguém pensa como algo mais imediato e forte, uma espécie de: Bingo. É isso mesmo!

É o que me diz a minha sensibilidade linguística, admito que numa interpretação bastante própria. Sei que o Ciberdúvidas não concorda com ela, mas gostava, mesmo assim, de saber, se a acham demasiado abstrusa...

Eu, francamente, acho algo sui generis considerar «ir de encontro» ao que o alguém pensa como «ir contra aquilo que essa pessoa pensa»...

Resposta

O que é dito pelo consulente parece coincidir com um tipo de exercício de intuição linguística praticado em modelos que pressupõem uma gramática interna – por exemplo, a das propostas generativistas no mundo anglo-saxão, embora também haja algo metodologicamente parecido na investigação francófona.

Quanto à transposição metafórica, ou seja, no domínio da metáfora linguística, há muita criação que acaba por se tornar corrente e ser permitida, a ponto de se fixar lexicalmente e figurar nos dicionários. Também é frequente que a transposição metafórica acarrete alterações semânticas de modo a acomodar o conteúdo transposto ao cenário que, no léxico mental, o acolhe e enquadra.

Numa perspetiva mais empírica, de identificação dos padrões de uso, acontece que, consultando a secção histórica do Corpus do Português (Mark Davies), a primeira impressão é de que as ideias de choque e pressão, em referência ao mundo físico, parecem ter associação (surpreendentemente?) estável com «de encontro a». É em textos mais recentes que se detetam os «de encontro a» não "confrontacionais"; mas, a supor que a confusão é recente, pode ela dever-se a um viés da constituição do corpus consultado:

(1) «Uma vez que parte da obra de Abel Salazar permanece ainda em parte incerta, ampliar e perpetuar o conhecimento acerca do seu patrono é o objectivo da Casa-Museu. Tal objectivo vai de encontro ao desiderato subjacente a toda a acção, cultural ou científica, do próprio Abel Salazar[...].» (Um espírito renascentista, 29/12/1996, in Corpus do Português).

A ocorrência em (1) configura claramente uma incorreção, à luz da tradição normativa, pelas razões frequentemente expostas no Ciberdúvidas (ver aqui e em Textos Relacionados).

Cabe observar, não obstante, que há também ocorrências de «ao encontro de» que poderiam muito bem ser substituídas por «de encontro a»:

(2) «O seu olhar de cobre, triste e ainda nocturno, incitava-os a caminhar ao encontro do inimigo, a visitar o ninho dessa ave beligerante que do alto os espiava e do solo erguia as suas emboscadas.» (João de Melo, Autópsia de um Mar de Ruínas, ibidem)

Em (2), a substituição de «ao encontro de» por «de encontro a» permitirá construir o termo do movimento de encontro como um choque, um confronto, ou seja, um recontro.

Não tendo sido aqui possível apurar a génese das duas locuções, conclui-se, para já, que a diferença terá sempre existido, e só nas últimas décadas se teria gerado a confusão.

Ainda assim, também não é de rejeitar a interpretação do consulente, legitimadora de certos casos em que o vincado contraste semântico das duas locuções em referência ao mundo físico se esbate quando se trata de marcar situações e atividades do domínio cognitivo e intelectual. Nessa perspetiva, em contextos menos típicos e, portanto, mais marginais em relação aos padrões de uso e à doutrina normativa sobre eles elaborada, «ir de encontro à opinião de X» não será equivalente a «estar em desacordo com X» ou «contrariar a opinião de X», mas, metaforicamente, «esbarrar com a opinião de X», sem excluir um eventual acordo.

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