«Como há quem goste de andar na moda, o melhor mesmo é explicarmos aqui em que situações está a palavra a ser usada nos meios que a acolheram. Como se se tratasse de um guia do incontornável.»
Já muito se refletiu sobre a indefinição do nome coisa, usado para designar inúmeras realidades sem, de facto, delimitar os contornos de nenhuma, tal a sua vacuidade de sentidos. Pedir «Traz-me uma coisa!» ou confessar «Falta-me uma coisa!» apenas desencadeia a curiosidade do interlocutor para o que vai ser dito a seguir. Coisa é uma palavra indefinida, qual pronome, cujo sentido se concretiza com o que se diz de seguida ou com um gesto indicador que se junta ao «Passa-me essa coisa!». E se a conversa não avançar no sentido do esclarecimento, é certo que alguém perguntará «Que coisa?»
A atualidade está, portanto, não na coisa mas no novo candidato ao esvaziamento de sentidos, que é o que acontece a uma palavra quando tem a pretensão de querer dizer todas as coisas, ou seja, quando a palavra tem “manias de grandeza”. Falamos do adjetivo incontornável, que, recentemente, temos visto sair de muitas penas (ou teclas) e não menos bocas para classificar inúmeras realidades de forma por vezes algo insólita.
Incontornável, segundo o esclarecimento avisado do dicionário da Academia, significa literalmente «que não se pode contornar» e, num sentido figurado, «de que não se pode escapar, que se tem realmente de enfrentar». Os sentidos dicionarizados são, porém, muitas vezes curtos face aos usos a que uma palavra é sujeita. É sobretudo no domínio da comunicação social que o recurso à palavra parece ser incontornável, que é uma forma de dizer que está na moda porque serve para tudo.
Como há quem goste de andar na moda, o melhor mesmo é explicarmos aqui em que situações está a palavra a ser usada nos meios que a acolheram. Como se se tratasse de um guia do incontornável.
Assim, incontornável é um adjetivo usado para classificar
a) realidades materiais: diz-se «trajetória incontornável», que é uma trajetória a que não se pode escapar, ou seja, temos mesmo de ir por ali. Certo? Também se pode dizer que uma obra ou um ovo são incontornáveis. Uma «obra incontornável» será muito importante e um «ovo incontornável» será um ingrediente sempre presente, numa dada época festiva, por exemplo. O que é certo é que este incontornável já não é tão obrigatório como o anterior. Felizmente! Incontornável é ainda a «luz de Nova Iorque», ou seja, ninguém consegue deixar de olhar para ela. Este sentido já poderá ir além da realidade material. Estará a luz amaldiçoada?!
b) o tempo: um «momento incontornável» ou «uma fase da vida incontornável» são intervalos temporais cruciais, que têm de ser enfrentados e vividos. Estão a acompanhar?
c) a linguagem: se a «palavra de alguém é incontornável», isso significa que o que essa pessoa diz é imprescindível. Dizer que uma «crítica é incontornável» significa que ela é imperiosa. O que vale é que incontornável significa «que não se pode contornar«, pois, em caso contrário, já estaria com a cabeça à roda com tanta volta interpretativa!
d) um conselho ou uma ordem: afirmações como «revogar a lei é incontornável», «este debate é incontornável» ou «a experiência digital é incontornável», na verdade, disfarçam uma ordem ou, no máximo, um conselho inequívoco: «Tens de revogar a lei!» e por aí fora. Afinal, o uso de incontornável é um jogo de charadas. Daqueles que se usam para treinar a mente, do género «descobre o sentido…»
e) pessoas: afirmar de alguém que é «uma figura incontornável» parece ser, nos dias que correm, um elogio-mor. Mas aqui a exegese da palavra começa a ficar mais difícil (nestes jogos é sempre assim: fácil no início, para prender a atenção, e depois ninguém chega ao nível máximo). Não se estará, com certeza, a afirmar que se trata de alguém que não se pode contornar (isso seria uma grosseria e o peso das pessoas não é para aqui chamado). Se é o sentido figurado que se pretende utilizar, a estranheza mantém-se: trata-se de alguém de quem não se pode escapar? Então, uma pessoa incontornável é, afinal, um grande chato!? Não, parece que uma «figura incontornável» é alguém que nos entra olhos dentro, que dá nas vistas, mesmo que não queiramos ver…
E o que será uma «visita incontornável» ou uma «situação incontornável»?
Atendendo a esta realidade incontornável, teremos de terminar com uma sugestão de acrescentamento à entrada de dicionário: incontornável, adj., o mesmo que fundamental, essencial, necessário, crucial, importante, imprescindível, inadiável, indispensável, descontrolado, ter preguiça de consultar um dicionário! Isto, sim, é incontornável!
E, se um dia, alguém afirmar «Isto é uma coisa incontornável», pergunte-lhe «O que é o quê»?