Quando abrimos as páginas de um clássico e, pelas mãos de Eça de Queirós, lemos:
«A expressão brutal escandalizou as delicadezas de Artur e o seu desprezo por Rabecaz foi completo quando o ouviu declarar, com o olho lúbrico, que o que apreciava no gado eram «as boas carnes».» (A Capital)
escandalizamo-nos por simpatia com Artur e saboreamos não sem ironia os sentidos que emanam do adjetivo brutal, impecavelmente escolhido para pintar o robusto Rabecaz como uma figura rude e grosseira que desconhecia a singeleza do elogio tecido de belas e sedutoras palavras.
Vergílio Ferreira, nas suas páginas, embala-nos na memória da origem etimológica de brutal, na sua forma latina brutale-, com o significado primordial de “irracional”, “selvagem”, “próprio dos animais”. A descrição da voz de Valongo explora estas aceções, procurando pintar um caráter aviltante:
«Havia talvez um mundo obscuro de vozes que se comunicam - a da noite pesada de humidade, a voz de sangue do amigo, a voz brutal do Valongo.» (Apelo da noite)
A palavra brutal exalou durante longos tempos toda uma panóplia de sentidos disfóricos que não eram alheios à violência ou à selvajaria, patentes, por exemplo, no esboço da desumanidade de um marido «muito grosseiro e brutal» (Maria Velho da Costa et al., Novas cartas portuguesas) ou na realidade chocante associada a um «brutal egoísmo» (Fernando Namora, O trigo e o joio).
Brutais também, que é o mesmo que dizer “chocantes”, são os novos sentidos que a palavra adquiriu em contextos informais. Mostrando-se capaz de uma plasticidade muito própria, observamos, atualmente, o mesmo adjetivo brutal sair do domínio disfórico para surgir no campo das avaliações positivas, ou melhor, extremamente positivas. Ora repare-se:
«− Gostaste do filme?
− Brutal!» (Leia-se “Fantástico”)
«− Como foi o ambiente do festival?
− Brutal!» (Entenda-se “Muito intenso”)
«− Este prédio é brutal!» (Compreenda-se “Enorme”)
«− Nunca falei com ninguém assim. Ele é brutal!» (Interprete-se “Fora do comum”)
E assim, o devir da palavra brutal conseguiu estender os seus sentidos até ao seu contrário, e, sem perder o significado original, juntar a todas as suas entradas de dicionário um uso próximo da interjeição.
Esta elasticidade coloca-nos, não obstante, um problema quase metafísico. Se nos disserem «O cozinheiro é brutal», devemos ir cumprimentá-lo ou fugir a sete pés? E se alguém afirmar «Estou a viver uma situação brutal», devemos confiar nos sentidos modernos e rejubilar, ou regressar aos sentidos originais e oferecer ajuda? Nesta situação, fingir que não se ouviu é que pode ser brutal!