«(...) Uma loucura divina, um desvario enciclopédico, parece ter tomado os autores deste empreendimento. O trabalho foi ingente. Os resultados assombrosos. Mas, enquanto não for mais exigente consigo mesmo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa deverá ser discreto em apregoar grandezas. (...)»
Pergunta-se o leitor porque chamam fraldiqueiro a certo político? Hesita na regência do verbo interferir? Tropeçou novamente com proactivo? Ignora o que, num texto brasileiro, queira dizer paquera? Disseram-lhe que o papá tem um problema laringotraqueobronquítico? Pergunta a sua filha, de férias, se deu comida ao lambari-de-rabo-vermelho? Não entre em pânico. Está tudo no Houaiss, o maior dicionário da língua portuguesa.
Durante 15 anos, uma equipa de 200 técnicos leu jornais, escutou rádio ou conversas de rua, compulsou glossários, espiolhou novos e velhos dicionários, aventurou-se em antiquíssimos documentos. Assim surgiu a mais completa colecção de palavras nossas. Outros idiomas dispunham, há decénios, de um instrumento semelhante, mas faltava o da terceira língua do hemisfério ocidental. Foi alma da ideia, e orientador dos trabalhos até falecer, o grande linguista brasileiro Antônio Houaiss. O monumental dicionário perpetuará o seu nome.
Publicado no Brasil, em 2001, em papel e CD-ROM, o Houaiss comporta 228 000 termos diferentes. E, visto muitos deles terem mais de uma acepção, atinge 380 000 definições. É obra, e ficamos todos bem-vistos. Tendo-se querido obter «um dicionário da lusofonia», foram reunidos vocábulos de todos os países de língua oficial portuguesa, e é patente uma especial atenção à linguagem de Portugal.
Mas impunha-se uma edição a pensar no nosso país. Não era só a divergência ortográfica a mexer com a ordem das palavras. Também a ordenação nas acepções tinha de ser outra (banheiro é para o brasileiro um lugar, para o português uma pessoa) e questões de oportunidade recomendavam diferente redacção (certa passagem da edição brasileira exemplifica com o partido português UDP, a portuguesa só fala em «o partido»). Um grupo de linguistas portugueses, chefiado por João Malaca Casteleiro, preparou a edição, que apareceu, em 2002, nos seis volumes do Círculo de Leitores e, em 2003, na editora Temas e Debates, em três volumes, com texto idêntico.
As novidades da edição portuguesa, por relevantes que sejam, são percentualmente insignificantes. E, assim, é a todos os directores, brasileiros ou portugueses, que terão de atribuir-se os conseguimentos e os falhanços.
Se alguma coisa logo se impõe à observação, é o encorpado deste dicionário. Luís Fernando Veríssimo, numa bela saída, escrevia, há semanas, nestas páginas: «Só pelo peso dá para ver que não falta nada.» Alguma coisa falta, e não despicienda, mas tem sentido a anotação. Um exame mais detido confirmará essa impressão de envergadura. O número de valores para um mesmo termo é, frequentemente, espantoso. O substantivo vela tem 15 sentidos, trabalho e mão não dispensam 29 cada, e o adjectivo claro tem 35. Há nada menos que 29 tipos de sabiá e 41 de cravo. Do verbo pôr apontam-se 52 acepções, de dar 71, de passar 77. Quanto a erva, não só tem 6 significados, como existem 316 termos que assim começam. Mas o que é mais: a arquitectura dos verbetes é exemplar, não raro convidando a repousada leitura. Claramente, muito foi concebido e redigido de raiz. A inclusão de sinónimos e antónimos (vagaroso tem 53 de uns e 51 de outros) enriquece ainda sobremaneira a pesquisa.
As informações sobre a origem dos vocábulos, não sendo em si novidade, são singularmente detalhadas. Sirvam de exemplo bacano, chique e uma das acepções de giro, a merecerem demorada etimologia. Menos louvável é aduzir, com alguma presteza, obscuridade de origem. Para bera, cafajeste e outros (como o esquecido fajardo) forneceu Orlando Neves – de quem se ignora, de resto, toda a produção dicionarística – aproveitáveis sugestões. Na vastíssima bibliografia, faltam, também, O Eufemismo e o Disfemismo no Português Modernos, de Heinz Kröll, e o Dicionário Aberto de Calão e Expressões Idiomáticas, desde há anos em rede.
O Houaiss informa, igualmente, do ano de entrada no idioma de um grande número de vocábulos. Respeitosíssima, porrada instalou-se em 1139 (terá a ver com a nacionalidade?) e chatice viu-se tomada a sério em 1913. Fica a saber-se que pára-quedas já existia em 1881 e clonar em 1947. Que baquelite data do mesmo ano e plástico, o material, de 1958. Mais recentes, ao menos para os dicionaristas, rapidinha é assinalada em 1960 e fofoca em 1975. Ainda mais próximos, apagão data de 1988 e proactivo de 1993.
Há aqui, todavia, um problema, de resto só parcialmente remediável. O que, muitas vezes, se indica é a data de dicionarização de um termo. Sirva de exemplo, esferográfica, datada de 1966, e que entrou em Portugal, com esse nome, por 1952. Algumas datações poderiam, assim, ver-se corrigidas com recurso a textos de imprensa. É o caso de burocracia, datado de 1881 mas já existente em 1859, de contraproducente, datado de 1973 (!) e que se lê em 1850, de neo-realista, datado de 1930 mas encontrável num periódico lisboeta de 1879. Em geral, as palavras são bem mais antigas do que, singelamente, cremos. Seja ainda exemplo Prontos!, não datado no Houaiss, e que a lenda urbana atribui ao Miguel Esteves Cardoso televisivo dos anos 90, quando o termo era corrente em 1950. Uma achega à próxima edição: o primeiro asa-delta voou, no Brasil, em 1974.
Suplementar vantagem é que as diferenças vocabulares e semânticas entre o Brasil e Portugal encontraram finalmente uma exposição séria, superando-se de vez os vários «dicionários luso-brasileiros» (entre eles o de Mauro Villar, de que se retomam passagens), todos tendendo para o leviano, por vezes anedóticos, aqui e ali aflitivos.
Espelhará o Houaiss o nosso exacto idioma? Sim e não. É nele clara, e virtuosa, a profusão das terminologias reles, como amochar, arranjinho, baldar-se, chanfrado, coninhas, estaleca, penetra, varado, centenas de outros. Quase todos os termos tabu de que o leitor se lembrar estão ali. Depois, muitos neologismos se viram acolhidos, sendo exemplos auto-ajuda, chamativo, cibernauta, mãe de aluguer, radical (dito de desporto), retorno (por feedback), teclar. E, também, os famigerados atempado (por oportuno) e implementar. Já atempadamente não entrou. Como ficaram de fora, para nosso espanto, quase todos os advérbios em mente.
A verdade é que este dicionário ignorou numerosos termos nossos. Já lamentável é excluírem-se belos plebeísmos como balda, betinho, à doca, estampar-se, flipar, ganza, grunho, à maneira, mariquice, népia, pedrada (e pedrado), pimba, puto (como em «não vi puto»), trafulha e muitos outros correntes. Grave é a exclusão de termos como contactável, e incontactável, desdramatizar, desmotivante (ou desmotivador), esferovite, eurocéptico, multibanco, plasticina, realojar, recarregável, retoma, seleccionador (em desporto), surfar, tuneladora, vidrão, todos correntes entre nós – e quase todos incluídos no Dicionário da Academia [das Ciências de Lisboa], que Malaca Casteleiro assinou. Se possível mais grave ainda é a ignorância de toda uma terminologia ligada à História portuguesa dos últimos decénios, a que pertencem cavaquismo, eanismo, marcelismo (o outro, para já), soarismo, mas também o pide (e a PIDE), pidesco, retornado, saneamento, sanear. Tudo isso revela alguma incúria no trabalho de casa e alguma desatenção (sejamos simpáticos) pela realidade portuguesa.
Não foi, nitidamente, por economia de espaço. Porque ele não faltou para curiosidades como acachamorrar ou acachaporrar, ou maravilhas como desengloblamento, desengrinaldamento, desentristecimento. Não faltou espaço, nem alento, para designar os habitantes da menor aldeola brasileira. Assim, há 16 entradas de lagoense, 22 de santanense, e 27 de nova qualquer-coisa, como nova-ipixunense. Não ficou esquecido o eduardo-gomense, o lajedinhense, o propriaense, o sananduvense. Lindo é o manhumirinense. Mas são quase quatro mil.
Sobrou ainda espaço para muitos milhares de termos de ciências várias. Muitos são correntes, numerosos deles úteis. Mas bastantes outros, de fraca necessidade, se alguma tiverem, não fazem senão atafulhar o dicionário. Chega-se ao pormenor de informar ser teleangiectásico uma «forma não preferível» de telangiectásico... É que a intenção era incluir tudo? Ouvimos nós bem?
Qualquer coisa, uma loucura divina, um desvario enciclopédico, parece ter tomado os autores deste empreendimento. O trabalho foi ingente. Os resultados assombrosos. Mas, enquanto não for mais exigente consigo mesmo, o Houaiss deverá ser discreto em apregoar grandezas.
Cf. O dicionário que quis ser império e falhou
Artigo publicado na revista Actual do semanário português Expresso, de 6 de novembro de 2004.