Para rimar com França, temos palavras como vizinhança, herança ou mudança. E que tal aragança? É verdade que rima na expressão «Franças e Araganças», mas não se pode dizer que seja uma palavra que tenha uso corrente fora desta expressão, conforme se observa numa resposta do consultório. Da nova atualização fazem parte outras questões: em «sete da tarde», qual é relação sintática entre «sete» e «da tarde»? É possível combinar duas preposições depois de um verbo? Que diferença entre o aspeto habitual e o aspeto iterativo? E como se podem chamar os naturais ou habitantes da cidade de Leiria?
As situações de extrema violência ou cenários de crise profunda em diferentes países – mencionem-se a Síria com o Iraque, a Nigéria, a Ucrânia ou até a Grécia –, deixando as populações à beira do aniquilamento, são motivo de enorme preocupação e, inevitavelmente, na ordem do dia dos noticiários em língua portuguesa. Menos curial é a insistência nas erróneas expressões «tragédia "humanitária"» ou «crise "humanitária"»; deem-se dois exemplos: «Centenas de milhares de sírios fugiram para a Turquia, nos últimos meses, após o início da ofensiva do Estado Islâmico naquela cidade, criando uma crise humanitária» (Observador, 29/01/2015); «A prioridade do seu Governo é combater “a crise social e humanitária”» (Público, 1/02/2015). São decalques de usos discutíveis de humanitarian em inglês («humanitarian tragedy», «humanitarian crisis»), transpostos no português e noutras línguas, como o espanhol, idioma que as imita, apesar das reservas das suas entidades com voz normativa. Se humanitário significa em «prol da humanidade», tem todo o sentido falar em «ajuda humanitária», mas já contraditório se torna associar tragédia ou crise a humanitário. Mesmo assim, na escrita jornalística em português acontece o mesmo que ocorre noutras paragens linguísticas: as expressões entranharam-se, e chega a parecer estranha uma alternativa consistente e vernácula. Porque não «tragédia humana» e «crise humana»1? Um episódio do programa Cuidado com a Língua! focou em tempos esta questão, numa breve sequência que está disponível no portal RTP Ensina.
1 Tal como sempre se disse e escreveu «desgraça (ou miséria) humana» – e não, nunca, «desgraça (ou miséria) humanitária».
Cf. Errar também será “humanitário”? + Quando é que um drama pode ser "humanitário"?! + Caos "humanitário"?! + Humanitário ≠ humano
Em Portugal, a divulgação em 26/01/2015 dos resultados da polémica Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidade (PACC), realizada em dezembro de 2014 por numerosos professores contratados, levou a comunicação social a focar os erros de ortografia, pontuação e sintaxe detetados no item 33 (resposta extensa orientada). As percentagens que o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) revelou em comunicado de imprensa – 19,9% das respostas continham 5 ou mais erros de ortografia, enquanto igual número de erros se registou em relação à pontuação de 16% respostas (a sintaxe «evidencia melhor desempenho») – suscitaram vários comentários, alguns para defender a prova, outros dela fortemente críticos (inclusive, sobre o português de quem a redigiu). Mas, na deteção dos erros ortográficos, uma questão está por esclarecer: terá sofrido penalização quem ignorou o novo acordo ortográfico? Convém observar que o acordo ortográfico de 1990 (AO 90) está a ser aplicado nas escolas portuguesas desde setembro de 2011 (na administração pública, desde janeiro de 2012). Mas deve igualmente lembrar-se que, em Portugal, até 13 de maio de 2015, o AO 90 coexiste com um documento normativo anterior, o de 1945.
27 de janeiro, Dia Internacional da Memória do Holocausto, instituído desde 2005 pelas Nações Unidas, assinalou neste ano o 70.º aniversário da libertação pelo Exército soviético dos prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz – o acontecimento que marcou a sua revelação ao mundo. Este processo de extermínio sistemático de populações civis, levado a cabo pelo regime alemão nazi durante a 2.ª Guerra Mundial, afetou várias comunidades, sendo, sem dúvida, a judia a mais martirizada. Em hebraico, a tragédia é designada por Shoah (também escrito Shoá), palavra que significa «catástrofe», mas em português diz-se Holocausto que – como formas paralelas noutras línguas – provém do grego holókaustos (hólos, «total, completo, inteiro», + kaustós, «queimado»), «sacrifício em que se queima a vítima inteira», por intermédio da forma latina holocaustum. Não se julgue que a palavra é recente em português: pelo contrário, é usada como substantivo comum e tem longa tradição em textos de índole religiosa, por aludir aos sacrifícios que os antigos hebreus praticavam e o Antigo Testamento refere. Pode ser sinónimo de sacrifício, como atesta a seguinte frase quinhentista, associando holocausto à construção de um paradoxo: «Pera o merecimento tambem, melhor he a obediencia que sacrificio, e nenhua cousa se offerece mais grata a Deos, que o holocausto da sancta obediencia» (Espelho de Disciplina, em Crónica dos Frades Menores, incluída no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira).
Marcadas pelo resultado das eleições gregas de 25/01/2015, as notícias convocam a memória de velhos laços culturais e linguísticos para avaliar quão vasto é o legado do grego antigo no português. Não é só o perfil do vocabulário técnico-científico a revelar essa herança; também noutras áreas se desenha o impacto grego, como acontece na vida política: democracia, tirania, demagogia, anarquia, autocracia, etc. são algumas das palavras que conservam testemunho da preocupação dos Gregos antigos pelo governo da cidade. Que novas palavras nos promete a Grécia contemporânea?
Cf. Palavras de origem grega + Palavras que vêm do grego + A história de duas línguas: o grego e o latim
Muitas palavras surgem não se sabe donde, como os fantasmas das chamadas lendas urbanas. A palavra piroso e a expressão «ser pires» aparecem do mesmo modo, do nada, explicadas por uma historieta que fala de um sr. Pires que, em Lisboa, venderia peças de vestuário à revelia da moda e do bom gosto. No consultório, uma resposta foca precisamente a origem de piroso, que refere uma categoria estética a que o português associa outros qualificativos, tais como foleiro, fatela, pimba ou, no Brasil, cafona – para além do empréstimo alemão kitsch –, cada qual com os seus matizes semânticos. Outros temas discutidos nesta atualização: o significado de chulipa, acionariado e «cinco réis de gente»; o uso de decadente à inglesa; e a relação entre hídrico e hidráulico.
Quando se aceita ou contesta a norma, observa-se muitas vezes que o erro de hoje há de ser forma correta amanhã. Do Brasil, onde supostamente a língua tem sido mais inovadora, chega-nos uma reflexão muito interessante do linguista Aldo Bizzocchi, que, na revista Língua Brasileira, foca o contributo, para a mudança linguística, do chamado cacoete, isto é, «gesto, trejeito ou hábito corporal feio» e, por especialização semântica, «palavra, expressão ou recurso estilístico, expressivo, empregado com exagero por usuário da língua, mais pela força do hábito do que pela necessidade» (Dicionário Houaiss). Analisando a moda brasileira de reforçar o sujeito («Pedrinho ele foi à escola»), Bizzocchi assinala que «antigos cacoetes [foram introduzidos], ou pelo menos disseminados, por falantes de uma certa influência social, contaminaram a maioria dos falantes séculos atrás e, de tão arraigados na fala coloquial, ascenderam à categoria de leis gramaticais, tornando-se, portanto, de uso obrigatório».
Outros fenómenos existem, que evidenciam um gosto surpreendente por formas irregulares, contrariando princípios de simplificação. Por exemplo, assiste-se cada vez mais, nos dois lados do Atlântico, ao uso de formas verbais compostas em que o auxiliar ter se associa a particípios passados irregulares («tem pego», «tinha morto»), em vez de formas regulares («tem pegado», «tem matado»). Que faz a norma com esta tendência? A resposta encontra-se no consultório, que ainda dedica espaço à grafia de «fim de semana», ao neologismo incendiarismo e à sintaxe do verbo prevenir.
O mundo muçulmano está na ordem do dia depois dos atentados de Paris no passado dia 7 e posteriores repercussões internacionais, fazendo recorrentes as palavras (de origem árabe ou não árabe) que a ele se referem. À volta das muitas oscilações gráficas, morfológicas e semânticas que esses termos apresentam – basta recordar a discussão gerada pela forma islamista –, aqui ficam breves comentários sobre três casos, buscando ora a forma tradicional, ora o aportuguesamento, ora a consistência entre forma e conteúdo:
– Islão e islão: a ortografia portuguesa, pelo menos desde meados da década de 40 do século passado (ver Rebelo Gonçalves, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de 1947, e Vocabulário da Língua Portuguesa, de 1966), tem-se apoiado numa distinção referencial para determinar o uso da maiúscula e minúscula iniciais; sendo assim, Islão designa o conjunto dos países islâmicos, enquanto islão é a designação da doutrina religiosa também conhecida como islamismo (ver esta resposta). Mencionem-se ainda as variantes Islã/islã (bastante usadas no Brasil) e Islame/islame. Para outra proposta, ver artigo de Francisco Bélard, disponível na rubrica Controvérsias.
– Chador e burca: a atualidade (com a história) exige termos mais específicos do que o vago e convencional «véu islâmico»; refira-se, por exemplo, a entrada no léxico português de chador – que, há algum tempo, os dicionários adotaram sem dificuldade, mas que, com rigor filológico, deveria ser xador –, e burca, adaptação adequada de burqa ou burka, transcrições de formas usadas em persa e árabe (consulte-se artigo da Wikipédia em espanhol; ver também nicabe, aportuguesamento de niqab).
– Integrismo e integralismo: como sinónimos de fundamentalismo, ocorrem nas notícias ambos os termos, mas, no plano religioso, na exata aceção de «apego exacerbado aos princípios e dogmas de uma religião, não admitindo qualquer tipo de mudança em relação a eles» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa), é integrismo o termo registado em vários dicionários (Houaiss, Priberam, Porto Editora).
Sobre este assunto, a rubrica O Nosso Idioma inclui uma lista que reúne mais palavras relacionadas com o mundo islâmico.
E eis que, depois de incontáveis testes de sobrevivência e crises de crescimento, o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa alcança os 18 anos. A chegada, por assim dizer, à maioridade muito deve aos nossos consulentes, com os quais travamos um diálogo constante e frutuoso há quase duas décadas. O resultado é um vasto arquivo – cerca de 35 000 respostas e mais de 3000 artigos de divulgação e debate –, que constitui hoje um extenso repositório representativo do que os falantes do português (língua materna ou não) pensam e querem saber ou discutir a respeito do seu idioma. As dificuldades têm sido muitas, e disso mesmo damos conta num texto colocado na rubrica Notícias, que remete por sua vez para alguns registos colhidos* na imprensa portuguesa sobre os 18 anos deste espaço sobre a língua portuguesa, em toda a sua diversidade e particularidades nacionais e regionais.
* O Ciberdúvidas já pode votar. E revela dúvidas frequentes e erros comuns + Há 18 anos que o Ciberdúvidas ensina o verbo "haver" + Ciberdúvidas celebra 18 anos sem dinheiro para bolo de aniversário + Parabéns Ciberdúvidas! + Parabéns pela maioridade, Ciberdúvidas! + 18 anos de Ciberdúvidas
Os acontecimentos trágicos ocorridos em França, entre 7 e 9 de janeiro deste novo ano de 2015, obrigaram a comunicação social portuguesa a fazer referência ao género mediático a que se dedicava boa parte das vítimas do jornal Charlie Hebdo. Nota-se ainda grande apego ao termo inglês cartoon, apesar de existirem já adaptações ao português; relembremo-las: cartune e, no Brasil, cartum (cf. Dicionário Houaiss). Observe-se igualmente que a designação "cartoonista" é muito discutível – para não dizer mesmo incorreta –, porque, no português, as palavras derivadas de empréstimos que são substantivos comuns não conservam as grafias características das línguas de origem. Por isso, recomenda-se cartunista.
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