Há uns dias, em Maputo, deparei com dois jovens sentados no muro da minha empresa e a um deles perguntei o que ele fazia ali. A resposta veio célere:
— Não estou a fazer nada.
Fiz a mesma pergunta ao outro jovem que me respondeu com a mesma prontidão:
— Eu? Eu estou aqui a ajudar o meu amigo.
Haver alguém que ajuda um outro a não fazer nada é do domínio da mais pura metafísica. Lembro este episódio e penso na habilidade notável que os nossos povos partilham de produzirem este tipo de atitude filosófica. Coexiste em nós, lusófonos, uma certa sabedoria que nos diz que a felicidade se constrói, sim, mas que também se pode ser feliz só por preguiça. O destino, o fado, os deuses: esses são os autores dessa narrativa a que chamamos Vida.
Lembro este episódio para dizer o seguinte: nós não falamos apenas uma mesma língua. Nós sentimos de modo semelhante aquilo que não pode ser dito em língua nenhuma: o peso do Tempo, o sentido da existência, uma certa ideia da eternidade. O vazio do nada é algo que, em português, se preenche do mesmo modo em qualquer indolente muro de qualquer das nossas cidades. É nesse muro que nos sentamos para nos dedicarmos a esse desporto que, na nossa família linguística, é mais popular que o futebol: a saudade do que aconteceu, a lamentação do que podia ter acontecido e o lançar de culpas sobre o que não chegou a suceder.
Quando a lusofonia foi proclamada como um projecto supranacional houve interrogações que foram levantadas. Eu mesmo questionei o sentido desse projecto numa realidade plural em que parte dos seus cidadãos não fala português ou fala português como segunda língua. Evidentemente que eu me posicionava tendo, sobretudo, em conta a realidade do meu país. Não seria justo inventarmos um patamar de cidadania que excluía, à partida, mais de metade dos moçambicanos. A verdade é esta: apenas uma das nações de Moçambique já vive na lusofonia. Apenas parte dos moçambicanos já se reconhecem como falando e sendo falados pela língua portuguesa. Mas também é verdade que toda a grande nação moçambicana encontra no português a sua língua de construção, o idioma que a projecta num corpo unitário e que a torna capaz de viver na modernidade.
Vale a pena, como exercício breve e sumário, relembrar algumas das incompreensões que emergiram no início da nossa constituição em família. Porque motivo, por exemplo, o meu país não parecia abraçar com o mesmo entusiasmo essa proposta de criação de uma comunidade inspirada na língua?
O lugar e o papel da Língua Portuguesa como idioma oficial em Moçambique foram debatidos, em 1962, no primeiro congresso da Frente de Libertação de Moçambique realizado na clandestinidade perto de Dar-es-Salaam. A maior parte das actas — incluindo a decisão de adoptar o português como língua oficial — foram redigidas em inglês. Os quadros com maior formação escolar tinham estudado nos países vizinhos. O português foi adoptado não como uma herança mas como talvez a mais valiosa ferramenta para forjar a unidade da futura nação. Se a adopção do português foi um acto de soberania, já a criação da lusofonia não resultou de iniciativa própria de Moçambique.
O projecto lusófono surgiu, afinal, pouco tempo depois daquilo que em Portugal se chamou de descolonização. Detenho-me na palavra descolonização porque ela é um exemplo claro de divergentes modos de ler o passado. O termo descolonização é emblemático do que Bernard Shaw disse do inglês: podemos ter uma língua comum para melhor nos desentendermos. Ainda hoje, para muitos portugueses o que aconteceu em África foi que Portugal, com o 25 de Abril, aceitou, enfim, descolonizar os territórios africanos. Ora, parece-nos a nós, africanos, que é preciso acertar o sujeito do verbo. Não foi Portugal que descolonizou os países africanos. A descolonização só pode ser feita pelos próprios colonizados. E nós, todos nós, sem excepção, éramos colonizados. Descolonizámo-nos uns aos outros, uns e outros. Parece um detalhe, coisa de uma simples palavra. E as palavras traduzem modos de pensar. E esse passado que nos feriu a todos não pode ser superado apenas com apelos ao esquecimento. Não é de esquecer o passado que necessitamos. Mas de o entender.
De qualquer modo, para Moçambique, o projecto da lusofonia surgiu pouco depois da ruptura colonial. Era natural que houvessem dúvidas. E parecia óbvio que os países africanos não se podiam reclamar da lusofonia do mesmo modo dos portugueses e brasileiros. A maior parte dos africanos amam as suas outras línguas maternas e esperavam (e ainda esperam) que esses idiomas não sejam votados ao esquecimento ou arrumados naquilo que se chama o património tradicional.
Estamos pois perante um processo que necessitou de vencer inércias e superar desconfianças. A falta de confiança, porém, não estava reservada apenas à antiga potência colonizadora. Havia suspeições de parte a parte. Vale a pena recordar aqui uma espécie de tesourinho deprimente da nossa história recente. Todos nos lembramos como certos sectores da política portuguesa entraram em pânico com a adesão de Moçambique à Commonwealth. O que se passava? Os moçambicanos haviam traído a sua fidelidade ao idioma luso? As reacções de algumas facções foram de tal modo excessivas que só podiam ser explicadas por um sentimento de perda de um antigo império. A exemplo do sindroma do marido traído que, não reconhecendo autonomia e maioridade na ex-mulher, sempre se pergunta: com quem é que ela anda agora? Moçambique andaria, assim, com o inglês. Não se apenas tratava de adultério mas ainda por cima que mau gosto, logo um inglês, com todos os fantasmas históricos que isso comportava.
Na realidade, as autoridades moçambicanas não mudaram a sua política linguística e o português permaneceu na sua condição de língua oficial e unificadora. Fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que séculos de colonização. Mas não o fez por causa de um projecto chamado lusofonia. Nem o fez para demonstrar nada aos outros ou para lançar culpas ao antigo colonizador. Fê-lo pelo seu próprio interesse nacional, pela defesa da coesão interna, pela construção da sua própria interioridade.
Há poucos dias a televisão moçambicana contou a história de dois jovens aliciados na província de Nampula para virem trabalhar em Maputo. Era um triste exemplo das novas redes de trabalho escravo. Os jovens foram, sem o saber, transferidos para a Suazilândia onde foram mantidos numa espécie de cativeiro. Os contactos com a gente local estavam limitados: os jovens falavam apenas a sua língua (e-makua) e não entendiam uma palavra de xi-swazi. Até que um dia, junto ao rio onde lavavam roupa, escutaram um grupo de jovens falando em português. Foi então que entenderam onde estavam e, ali mesmo em português, planearam a sua fuga para Moçambique.
Este episódio parece isolado e circunstancial mas ele traduz o quanto a língua portuguesa nos serve como cartão de identidade numa realidade linguistica tão dispersa e fragmentada. Esta é a ironia da História e do modo como ela baralha os destinos: sabemos quem somos e onde estamos por via de um idioma que, antes, parecia ser dos outros e vinha de fora.
Companheiros e amigos
Demorei-me a relembrar algumas das ressalvas e receios que ainda recentemente se colocavam sobre o assunto da lusofonia. Ora, hoje, eu creio que há que ter uma postura prática, voltada para a construção de soluções. Agora, é preciso e é urgente desenharmos acções que afirmem a nossa individualidade num mundo globalizado. Passaram-se anos e não podemos prolongar eternamente os debates sobre a nossa própria existência. Não temos senão duas alternativas: ou ficamos no muro da retórica ou descemos para o chão da realidade, mesmo aceitando que essa realidade se diz no plural. Teremos a comunidade que entendermos ser a nossa e aquela que melhor nos servir. Basta que a façamos.
Felizmente, nós já estamos realizando esse exercício construtivo. Em muitos terrenos, nós já não somos mais os amigos sentados no muro da metafísica. Em muitas áreas, já fizemos descer a enxada sobre a terra. Uma dessas áreas foi exactamente a da comunicação social, e mais particularmente, da rádio e da televisão. Na sala da minha casa em Maputo, no rádio do meu carro quando circulo pelo meu país, eu vou sendo sujeito e objecto dessa construção. Centenas de milhares de moçambicanos vão-se inventando parceiros desta entidade feita sem pais nem filhos, desta família que se quer feita só de irmãos.
Por essa razão, por todo esse empenho, eu quero congratular os fazedores deste grande fórum de trocas de alma e cultura. Todos os nossos países estão a tarnsbordar de consultores e assessores que nos vem dizer como fazer. Mas há poucos que têm as mãos sujas de terra e que podem dizer: vejam, eu fiz, eu semeei, plantei e colhi. Aqui, nesta sala, estão muitos desses que fizeram e que podem mostrar trabalho feito. Para todos vocês, o meu abraço de reconhecimento.
Um dos mais emblemáticos estereótipos de África é a imagem da fogueira nocturna, em volta da qual os mais velhos contam histórias. Pois, de alguma maneira, a Rádio e a Televisão que aqui festejamos hoje se converteram nessas fogueiras que aconchegam as almas e encenam para nós a ilusão de que o mundo todo se senta no mesmo pátio da nossa aldeia.
Manda a coerência que eu, nesta intervenção seja prático e produtivo. O que farei agora — e até ao final desta minha fala — é partilhar convosco algumas sugestões listadas com a humildade de quem se assume como um mau rádio-ouvinte e ainda pior telespectador.
Primeira sugestão — Concertar agendas nacionais e supranacionais
Os países africanos estão ainda construindo a sua própria lusofonia. Queremos que essa agenda nacional seja respeitada, e que outros programas se articulem em harmonia com esta construção interna. Todos sabemos que este edíficio da lusofonia dentro dos nossos países é um assunto extremamente sensível exactamente porque tem a ver com a construção das nossas próprias identidades nacionais.
É verdade que não podemos pedir que o nosso projecto comum fique à espera que se cumpram os programas de cada um. Mas podemos cuidar que a lusofonia supranacional se desenhe sem atropelar essas agendas nacionais. Isso implica a existência de um fórum de consulta permanente para a definição e avaliação da programação das nossas estações comuns.
Deve ser dito que somos todos vítimas da mesma lógica de governação que coloca a prioridade nos assuntos económicos e relega para mais tarde as questões culturais e linguísticas. Deve ser dito ainda que, muitas vezes, falta nas nossas políticas domésticas coragem para defender interesses nacionais e não apenas conveniências políticas de ocasião.
Segunda sugestão — Respeitar individualidades
Os lusófonos são pensados e falados do seguinte modo: Portugal, Brasil e os PALOP. Surgimos como um triângulo com vértices um no Brasil, um em Portugal e um terceiro em África. Ora, os países africanos não são um bloco homogéneo que se possa tratar de modo tão redutor e simplificado. Não se pode conceber como uma única entidade os 5 países africanos que mantêm, entre si, diferenças culturais sensíveis. As nações lusófonas não são um triângulo, mas uma constelação em que cada um tem a sua própria individualidade.
O respeito pela individualidade, contudo, não nasce de apelos nem de acusações. O respeito conquista-se. Em lugar da retórica politica fácil espera-se que sejamos capazes de produzir obra que os outros reconheçam e admirem.
Terceira sugestão — Abandonar o apelo ao coitadismo
Nós, os africanos, devemos abandonar uma atitude apelativa, ficando à espera que outras nos recompensem de injustiças passadas. A energia que costumamos colocar nessa apelação deve ser investida na criação de alternativas e na produção da nossa própria riqueza. Reclamamos que a língua não tem dono e que a lusofonia é de todos nós, mas ficamos à espera sejam Portugal ou o Brasil a tomar a iniciativa. Escusamo-nos na falta de recursos mas nem sempre usamos os primeiros grandes recursos que são a originalidade e a imaginação.
Quarta sugestão — Aplicar princípios de laicidade
A programação radiofónica e televisiva, por vezes se esquece de uma simples verdade: não somos uma população exclusivamente católica. E necessitamos respeitar a pluralidade religiosa do espaço lusófono. A nossa identidade linquística deve coexistir com outras identidades que nos tornam múltiplos e plurais.
É urgente discutirmos em conjunto como aplicar nos órgãos de comunicação social os princípios de laicidade que caracterizam os nossos Estados.
Quinta sugestão — Evitar uma identidade refúgio
Ao escutar o noticiário das cadeias lusófonas eu noto o seguinte: existem notícias dos nossos países que abrem noticiários mas que são insufladas de injustificada importância. São novidades de paróquia e dominam um noticiário que secundariza aquilo que de importante e actual está ocorrendo no mundo. As declarações de um coordenador de uma quase inexistente ONG podem abrir o noticiário no mesmo dia em que temas cruciais estão fazendo estremecer o mundo.
Não temos que fazer da lusofonia uma toca, um refúgio. Necessitamos, sim, de um instrumento para nos trocarmos com as outras comunidades linguísticas. Importantes movimentos de pensamento inovador estão ocorrendo em diversas regiões do continente africano. Nós estamos cegos e surdos. Literatura de grande qualidade está surgindo em África. Essa literatura só está sendo divulgada na Europa e na América. A música africana de qualidade que não nasce nos nossos 5 países deve entrar nas nossas estações e contagiar a nossa própria produção musical. Se não fizermos, seremos lusófonos, sim, mas seremos uma ilha pobre e autista.
6 — Uma ideia folclórica do que somos quando estamos fora
Os programas que fazemos para os nossos cidadãos na diáspora quase sempre se fundamentam numa ideia folclórica dos nossos que estão fora.
Os nossos cidadãos que vivem fora das suas fronteiras nacionais nem sempre se reconhecem no reviver dos ranchos folclóricos e no repetição sem qualquer imaginação daquilo que se entende por cultura tradicional.
Posso-vos assegurar: as comunidades portuguesas em Moçambique e as comunidades moçambicanas em Portugal estão muito distantes desse estereótipo de gente conservadora, envelhecida em redor da evocação da saudade.
E porque não pensarmos em criar, para além de emissões para as comunidades no mundo porque não criarmos, dizia, uma estação para o mundo? Porque não pensarmos em ter uma Televisão e uma Rádio da Lusofonia que, a exemplo da BBC e da CNN, produzissem informação de referência sobre os nossos países? Imagino as dificuldades práticas de implementar tal projecto, mas a verdade é que não temos sequer ousadia de o pensarmos e de o sonharmos.
Num mundo americanizado e dominado pelo idioma inglês, a lusofonia deve ser um pólo de diversidade criativa não apenas no plano linguistico mas cultural, politico e filosófico. A nossa força não se traduz apenas na quantidade de falantes espalhados pelo mundo. Seremos fortes apenas se produzirmos um pensamento próprio, original e interventivo.
Voltemos aos jovens que se entreajudavam para não fazer nada e que, nessa ausência de tarefa, se iam saindo até muito bem. Pois esses mesmos personagens poderiam tecer entre elas o seguinte diálogo:
— É muito cedo para fazermos qualquer coisa, diria o primeiro
— E esperamos até quando?, perguntaria o segundo.
E o primeiro responderia:
— Esperamos até que seja demasiado tarde.
Temos um modo estranho de lidar com a realidade, como se o real fosse um contrabando a transportar para territórios que não são nossos. Um dos territórios a que nos habituamos que não fosse nunca nosso é o futuro. Os outros, de outras línguas, parecem sentir-se mais à vontade nesse lado de lá do tempo. Tanto nos disseram que éramos pequenos para ter presente que acabamos por encarar o futuro com suspeição. Contentamo-nos com viver de desbotadas memórias de um passado longínquo. É verdade que não podemos criar história fora do passado. Mas não podemos é fazer do passado a nossa História.
Falo da dificuldade de nos projectarmos no Tempo porque aquilo que nos traz aquilo hoje — a lusofonia — existe no futuro para ser pensado ontem e produzido hoje. A lusofonia é algo estranho pois é um ser que existe para nascer. A lusofonia é qualquer coisa que é já nosso mas que parece ainda não nos pertencer a todos por igual. De uma criatura assim seria mais fácil dizer mal e lançar suspeições. O projecto da lusofonia tem essa enorme desvantagem de ser preciso fazer qualquer coisa e de nos empurrar para fora desse invisível muro onde descansamos existências e lançamos culpas sobre os outros.
O debate sobre o que somos e seremos deve prosseguir. Mas será no que fizermos que nos converteremos realmente numa comunidade capaz de propor discursos inovadores e introduzir mudanças.
Para terminar, apetece-me deixar uma advertência para aplacar dúvidas e hesitações que enunciei no início. Dizemos que a língua portuguesa não é apenas dos portugueses. E acreditamos que isso seja a manifestação de uma intenção política, de uma vontade adoptada. Mas não se trata de intenção ou vontade. Trata-se de uma questão histórica: há séculos que a língua portuguesa é também africana. O que seria do idioma português se não tivesse beneficiado das contribuições línguísticas dos árabes que ocuparam e viveram na Península Ibérica? Esses árabes ajudaram a tecer este grande tapete onde se deitam as nossas almas. Esses árabes são africanos, tanto como nós, os que habitamos mais a Sul. Há séculos que o idioma lusitano é um filho mestiço de namoros feitos entre as duas margens do Mediterrâneo.
E mesmo se nos quisermos abster à influência das línguas bantus nascidas depois do tempo das caravelas: há quanto tempo palavras como minhoca, cambada e candonga e tantas outras se instalaram na língua portuguesa? Pois eu vos digo, tomando apenas um exemplo: a palavra minhoca instalou-se no século VXI e hoje a maior parte dos portugueses nem sequer suspeita da sua origem longínqua. Meus amigos, a verdade é a seguinte: a lusofonia não começou hoje. A nossa língua comum foi construída por laços antigos, tão antigos que por vezes lhes perdemos o rasto.
De uma vez por todas, superemos receios e fantasmas. De uma vez por todas namoremos o futuro para que ele se enamore de nós.
Muito obrigado.
alocução produzida na Conferência Internacional sobre o Serviço Público de Rádio e Televisão no Contexto Internacional: A Experiência Portuguesa, no âmbito dos 50 anos da RTP, realizada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no dia 19 de Junho de 2007