« (...) O impressionante avanço do português, e a sua afirmação como única língua literária [em Angola] tem produzido uma série de efeitos perversos. Forçar um escritor a trabalhar numa língua outra, que não o seu idioma materno, constitui quase sempre uma terrível violência. (...)»
Nos últimos anos da época colonial, apenas uma pequena percentagem de angolanos falava português, como língua materna. Era, claramente, a pequena burguesia urbana: brancos, mestiços e negros, descendentes, em muitos casos, das velhas famílias escravocratas que prosperaram em Luanda até ao século XIX. Um quarto de século após a independência, esse número cresceu de forma impressionante, devendo o português ser hoje a segunda língua materna mais falada em Angola, logo depois do umbundo. Tal fenómeno, ainda pouco estudado, parece-me verdadeiramente espantoso. Pela primeira vez uma língua de origem europeia conseguiu enraizar-se em África, tornando-se numa língua africana, num espaço de tempo muitíssimo curto e por acção dos próprios filhos do país.
Haverá muitas explicações para este fenómeno e, seria interessante se conseguíssemos discutir algumas. Creio que entre elas está o facto de o português ter transitado, do regime colonial para o novo regime de Angola independente, como língua de poder. O actual presidente angolano e a maior parte dos homens que o rodeiam, bem como os oficiais mais poderosos das forças armadas, são pessoas de língua materna portuguesa. Também a guerra, ao movimentar grandes massas humanas dentro do território nacional, contribuiu para a expansão do português.
Infelizmente, a afirmação da língua portuguesa fez-se em larga medida, à custa dos idiomas nacionais, em particular do quimbundo, gerando ou arriscando-se a gerar, movimentos de resistência, e alimentando conflitos .
Aquilo que está hoje a ao correr em Angola ocorreu no Brasil, de forma semelhante, embora ao longo de um período muito mais lato. Deveriam existir cerca de 1200 línguas nacionais indígenas quando os portugueses desembarcaram nas praias deste vastíssimo território a que hoje chamamos Brasil. Actualmente, não existirão mais de 180. Este terrível massacre linguístico terá sido um dos maiores crimes cometidos pelos portugueses, e sobretudo por brasileiros, ao longo de cinco séculos. É certo que o Português do Brasil incorporou um grande número de palavras indígenas e africanas – fenómeno que não aconteceu, pelo menos com idêntica extensão, no inglês falado nos Estados Unidos ou na Austrália – e, assim, um pouco da alma destas línguas sobrevive hoje sobrevive hoje no nosso idioma.
Existem actualmente cerca de seis mil línguas em todo o mundo. Destas, três mil vão desaparecer muito provavelmente nos próximos cem anos. Noventa e seis por cento das línguas do mundo são faladas por apenas quatro por cento da humanidade. Em média, a cada quinze dias desaparece uma língua, e África é o continente mais ameaçado.
Ao contrário do que sugere o mito de Babel, acredito que é mais fácil alcançar Deus, ou seja, o entendimento do mundo, falando muitas línguas, do que comunicando numa única. O pensamento exige palavras. Um pensamento muito complexo exige muitas palavras e diversos idiomas. Quando essas línguas se perdem, o homem fica inevitavelmente mais longe do Absoluto. Há realidades, emoções, certos prodígios e mistérios que só podem ser expressos em determinadas línguas. Uma única língua não é capaz de expressar todas as formas e graus da compreensão humana.
Acredito, por outro lado, que a luta pela afirmação da língua portuguesa em África, e em particular em Angola, está ligada a este outro combate, mais urgente, pela preservação dos idiomas africanos originais. Se a língua portuguesa continuar a afirmar-se em Angola como língua de poder e de domínio – se não mesmo de extermínio -, isso acabará inevitavelmente por gerar fortes movimentos de resistência, aprofundando fracturas que uma longa e cruel guerra civil expôs até ao osso.
A guerra civil em Angola foi, até um certo ponto, resultado de um antiquíssimo conflito entre o campo e a cidade. E se é certo que esse conflito foi explorado por um obstinado e ambicioso messias de origem camponesa com o fim de alcançar o poder, também é certo que só conseguiu prosperar devido à arrogância de uma certa burguesia urbana, a a qual se tem esforçado por impor a todo o país uma caricatura miserável da normalidade colonial (a única que conhece). Desaparecido esse homem foi possível firmar a paz. Nos próximos tempos os angolanos terão de conseguir iniciar um diálogo honesto entre todas as nações, e visões, do território nacional. Devolver a dignidade às línguas nacionais de origem africana é também uma forma, a meu ver, de consolidar a paz.
Assisti em Luanda, numa festa de ano novo, a um conflito entre vizinhos. Ambos tinham trazido as mesas para o quintal. Ambos exibiam, orgulhosos, boas aparelhagens de som. Num dos quintais ouvia-se música zairense. Naquele onde eu estava, música popular brasileira, música popular luandense e jazz. Bebera-se já bastante cerveja, muito vinho tinto, quando um dos vizinhos decidiu aumentar o som. O outro fez o mesmo. Era a guerra. Em breve já não havia música, apenas ruído, um furioso estrépito de fim do mundo. Aquilo durou uns minutos. Uma eternidade. Finalmente, foi necessário negociar. Trocaram-se palavras amargas. Não esqueço a forma como o conflito terminou: “Lá porque vocês falam melhor português”, disse o vizinho que gostava de música zairense, “não são mais angolanos do que nós.” Uns anos antes talvez tivesse acontecido o oposto. O vizinho de língua materna portuguesa poderia ter dito ao outro: “lá porque você fala quicongo não é mais angolano do que eu.”
Provavelmente é o momento certo para negociar. Em encontros como este, sou frequentemente confrontado com a questão:
«Porque é que em Angola, país de muitas línguas, os escritores apenas utilizam o português?»
É difícil explicar esta situação nos países nos quais, à semelhança de Angola, coexistem no mesmo espaço geográfico diversos idiomas. Olhemos, por exemplo para Espanha: utilizam-se no país de Cervantes quatro grandes línguas: o espanhol, o catalão, o basco e o galego, sendo o espanhol, ao mesmo tempo, um idioma nacional, língua materna de uma das etnias de Espanha, e transnacional, ou seja, é uma língua falada em todo o território. O ditador Francisco Franco tentou aniquilar as línguas étnicas, impondo à força o castelhano, mas apenas conseguiu com isso exaltar os diferentes nacionalismos. Hoje, existe uma literatura espanhola em castelhano muito forte, mas existe também uma vigorosa literatura em catalão – e os bascos e galegos, embora com menos possibilidades económicas, esforçam-se por seguir o seu exemplo.
O mesmo se passa em diversos países africanos, com destaque para a República da África do Sul, tão perto de Angola, onde os escritores são livres de escolher entre o inglês, o africanse, o zulu, etc. Um escritor que opte pelo zulu pode sempre, mais tarde, fazer-se traduzir para inglês, idioma nacional e transnacional naquele país.
Em Angola, paradoxalmente, as línguas nacionais de origem africana não beneficiaram muito com a independência. Luanda foi, até finais do séc. XIX, uma cidade bilingue, sendo os colonos portugueses forçados a aprender quimbundo. Chegaram mesmo a publicar-se, nesse período, dois jornais em quimbundo. Hoje isso seria impensável.
O impressionante avanço do português, e a sua afirmação como única língua literária do país, tem produzido uma série de efeitos perversos. Forçar um escritor a trabalhar numa língua outra, que não o seu idioma materno, constitui quase sempre uma terrível violência, que se traduz por um empobrecimento, senão mesmo por uma falsificação, do universo original. Os escritores que têm o português como língua materna, e em particular os escritores de ascendência portuguesa, são, neste contexto, claramente beneficiados.
Existem, é claro, existiram sempre, escritores capazes de trocar de idioma, sem traumas, sem complexos, e ainda de transformar isso numa vantagem. Vladimir Nabokov, por exemplo, transportou para o inglês o particular humor russo, jogos de palavras, efeitos sonoros, criando, assim, um estilo absolutamente singular. Fernando Pessoa, que viveu os primeiros anos da sua vida na África do Sul, sentia-se à vontade quer em português quer em inglês, e é óbvio que essa dupla pertença beneficiou o seu projecto literário. Essa, porém, não é a regra.
Às instituições culturais angolanas, governamentais ou não, cabe o difícil papel de inverter este quadro, promovendo, por exemplo, a edição em línguas nacionais africanas. Dir-me-ão que a edição de obras em idiomas étnicos não tem futuro comercial. Efectivamente, a maioria dos angolanos alfabetizados, e que têm o hábito de ler, isto é, que compram mais de dez livros por ano, apenas falam português; e mesmo aqueles que dominam outros idiomas nacionais preferem comprar livros em português – e se possível em Portugal! Exactamente por isso parece-me importante a intervenção do Estado, apoiando as editoras que decidirem correr o risco de publicar livros em línguas nacionais.
Todo o cenário mudará, é claro, quando todas as crianças angolanas passarem a ser alfabetizadas nos respectivos idiomas maternos.
Um bom princípio, já ensaiado pela editora Nzila, ligada à editora portuguesa Caminho, é o da publicação de textos bilingues. Como primeiro passo, a Nzila lançou recentemente uma edição da famosa novela de Manuel Rui Quem Me Dera Ser Onda, traduzida para umbundo por Almerindo Jaka Jamba. Esperemos que comece em breve a fazer o inverso, isto é, a lançar textos originais em línguas africanas acompanhados pela respectiva tradução portuguesa, assinada, se possível, por figuras respeitadas da literatura angolana.
A literatura é um excelente investimento. Um bom romance angolano pode sensibilizar mais gente no mundo inteiro, para a situação, por exemplo, das vítimas de minas do que qualquer campanha internacional. Jorge Amado fez mais pela indústria do turismo em Salvador da Baía, com um único dos seus livros, do que todas as agências de viagens juntas.
Não obstante o colapso do aparelho de Estado formaram-se ao longo dos últimos 25 anos largos milhares de quadros angolanos, facto que constitui, a meu ver, o maior triunfo da independência. Em 1975, apenas um homem, Mário António de Oliveira, havia pensado e escrito sobre o país, sobre a formação e as particularidades de Angola, com alguma profundidade. Hoje, podemos juntar às ideias de Mário António – que soube fazer o elogio da crioulidade, muito antes que um Patrick Chamoiseau, por exemplo – todo um já largo pensamento angolano, com destaque para a obra de Ruy Duarte de Carvalho e de Mário Pinto de Andrade, entre outros historiadores, sociólogos, antropólogos e escritores. Angola começa, finalmente, a ter uma imagem de si própria. Por outro lado, o regresso ao país de um grande número de jovens que estudaram no estrangeiro, em países democráticos como Portugal, Brasil, África do Sul ou Estados Unidos, com uma visão cosmopolita e mais aberta, está a trazer uma corrente de ar fresco a um ambiente que era, nos duros tempos da guerra, quase irrespirável.
Apesar do caos imenso e da imensa dor que a guerra provocou, acredito que Angola está hoje em melhor situação do que há 28 anos para lutar por uma verdadeira independência. Porque temos finalmente o essencial: um pensamento angolano, uma língua transnacional (a sexta mais falada em todo o mundo) e homens e mulheres preparados para governar o país.