«Essa brava aldeia de Astérix [do anti-Acordo Ortográfico, em Portugal, findo que foi o período de transição para a sua adoção plena] – escreve o autor na sua coluna de opinião do "Jornal de Notícias" de 15/05/2015 – escava hoje as últimas trincheiras legais, implora a ajuda da preguiça lusófona para a sua derradeira batalha, reza pela heterodoxia de Angola e desconfia do Brasil, essa vil potência do gerúndio e das vogais indecentemente abertas. Quem sabe se ainda os veremos a ter um candidato presidencial – um Octávio com "c" ou um Baptista com um "p" dos que algumas tias velhas ainda cuidam em pronunciar ao chá.»
Às vezes, neste país em que a crise nos trocou os dias e insoniou as noites, nos cortou os salários e a esperança, nos ajouja de impostos, neste Portugal vendido ao desbarato, na grande feira liberal exportada de Chicago para Massamá, às vezes, afinal, é por outra razão que não essa que se levantam os mais fortes clamores de revolta.
É como se a pérfida Albion nos tivesse impedido, de novo, o sonho do mapa cor de rosa, como se os "turras" voltassem a decepar colonos incautos, como se o pandita Nehru reafundasse o "Afonso de Albuquerque" nas águas mornas de Pangim. É a pátria ofendida que regressa, desta vez pela aguda gravidade de um acento perdido, consolando a orfandade de vogais que choram o fim de alguns circunflexos telheiros gráficos.
Vá lá que, por essa bandeira, não se sai à rua para escacar montras e cabeças, não se atulham alamedas de clamores, poetas de peito feito não anunciam "Marias da Fonte", não se descem avenidas, de cravos irados e de braços dados, rumando a Rossios de indignação e vilas morenas.
Esse rumor cívico trepa, contudo, há muito, pelos posts de blogues soberanistas, excita-se nas laudas severas da estimável folha diária da Sonae, num feroz "no pasarán!", verbaliza-se, com anónimo arrojo, no vernáculo das caixas de comentários. São a brigada do asterismo, os que anunciam, lá ao fundo do texto, a sua orgulhosa não adesão ao ultraje gráfico.
No passado, andariam pelas catacumbas do MUD, hoje dão a vida cívica por uma muda consoante. São netos dos nostálgicos do "ph" da farmácia, dos chorosos, tal como Pessoa, da graça do "y" que o cisne em tempos perdeu, dos que há muito se haviam sentido tramados pela falta do trema que germanicamente lhes ornava os "u", separados do futuro por um elidido hífen.
Essa brava aldeia de Astérix escava hoje as últimas trincheiras legais, implora a ajuda da preguiça lusófona para a sua derradeira batalha, reza pela heterodoxia de Angola e desconfia do Brasil, essa vil potência do gerúndio e das vogais indecentemente abertas. Quem sabe se ainda os veremos a ter um candidato presidencial – um Octávio com "c" ou um Baptista com um "p" dos que algumas tias velhas ainda cuidam em pronunciar ao chá.
O Acordo Ortográfico entrou agora, definitivamente, em vigor. Quem o não quiser utilizar que o não faça. Mas será assim uma questão tão importante? Afinal, se bem repararam, no artigo que acabam de ler, nem por uma vez se divergiu da velha escrita. Não estão de Acordo?
Artigo publicado no "Jornal de Notícias" de 15 de maio de 2015.