« (...) Há estrangeirismos a mais nas páginas do Público. E os erros de português sucedem-se... (...)»
«Os leitores do Público dirigem-se frequentemente a V. Exa. criticando (com razão) a excessiva e abusiva utilização de estrangeirismos, nomeadamente anglicismos, nas páginas do jornal. Insisto no mesmo assunto, embora sem bater mais no ceguinho (jornalistas do Público). Prefiro tomar como alvo doutos opinadores. No seu bis sobre a imprensa militante (matéria em que deve ser especialista), o Doutor Vital Moreira perora sobre checks and balances e veto powers, talvez arrastado pelo entusiasmo que actualmente desperta entre nós a língua de Tony (e de George, não esqueçamos). Mas o distinto professor de Direito mostrava claramente a sua inexperiência nas línguas estrangeiras ocidentais quando escreveu, na sua primeira arremetida contra a Imprensa Militante, contervailing powers. Embora o primeiro vocábulo (contervailing) não exista, já fez escola. Em resposta ao catedrático coimbrão, a Dra. Constança Cunha e Sá faz uso do mesmo vocábulo, sem aspas nem comentários. A menos que se trate de arreliadora gralha do Público digital (5 de Junho de 2007), apetece dizer que se não conseguem resistir à utilização de anglicismos, ao menos usem-nos correctamente.
Em jeito de despedida, cumpre dizer que, apesar de alguns disparates, continua a ser o melhor jornal da ‘paróquia’», escreve Orlando Simas.
Os reparos são pertinentes.
É provável que contervailing (em vez de countervailing) seja apenas o resultado de uma arreliadora gralha, mas as aspas eram necessárias.
O termo Countervailing Power (à semelhança de affluent society, ou de conventional wisdom, por exemplo) é atribuído ao diplomata e economista iconoclasta John Kenneth Galbraith (falecido em 2006).
Seja como for, há estrangeirismos a mais nas páginas do Público.
E os erros de português sucedem-se...
«Vezes sem conta tenho anotado, bem como alunos meus, incorrecções graves na escrita do português, em notícias do jornal Público, e porque começo a recear que o erro ortográfico se esteja a institucionalizar, fruto de uma nova pedagogia da educação, alerto para o anúncio de Ípsilon, sexta-feira, 25, na última página da edição de domingo, 20 de Maio, em que se escreve, e transcrevo, "Já estivémos todos em África – escritores, realizadores, documentaristas portugueses falam da sua relação com África". Obviamente que o erro está na acentuação do primeiro verbo. Lendo um jornal com sucessivos erros ortográficos, agora que os media intervêm, ultrapassando os textos literários, na sala de aula e em manuais, os alunos criarão em si a incerteza sobre quem tem razão: o professor ou o jornalista? E desta situação eu tenho experiência, porque já fui questionada sobre uma palavra que corrigira (estás e não "tás", como o aluno supunha escrever-se, porque também a vira assim escrita num anúncio publicitário). Que se lembrem as palavras de Bernardo Soares: "A ortografia também é gente", porque é balsâmica e muito formativa a convivência com o texto literário», escreve Maria do Carmo Vieira, professora na Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa.
O reparo é pertinente, obviamente. É lamentável o erro não ter sido detectado por ninguém. O anúncio é uma iniciativa do próprio Público e teve honras de última página...
«O erro está na acentuação do verbo estar, sim. A forma verbal estivemos é a primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo, que não é acentuada. A regra geral é a seguinte: as palavras graves não levam acento gráfico. As palavras graves acentuadas são excepções: e há-as por diversos motivos, mas não é o caso.
A colocação incorrecta do acento aconteceu certamente por analogia com a primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo dos verbos regulares da primeira conjugação, ou seja, dos verbos terminados em –ar no infinitivo (falámos, convidámos, apanhámos, colocámos, etc.), que leva acento, distinguindo-se, assim, da primeira pessoa do plural do presente do indicativo (falamos, convidamos, apanhamos, colocamos). Ora o verbo estar é irregular e, nele, o acento não é necessário, pois as formas do presente e do pretérito são diferentes: nós estamos, nós estivemos», esclareceu Maria Regina Rocha, professora de Português e consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.
«A edição electrónica de hoje, 15 de Maio, publica um texto de Jorge Heitor com o título "Soldados mortos no fim de reunião destinada a travar combates entre forças paquistanesas e afegãs".
Achei interessante procurar perceber porque é que era notícia um caso em que "o cão mordeu o homem", uma vez que se a reunião se destinava a "travar combates", nada mais natural do que haver "soldados mortos".
Só percebi ao ler a notícia que o jornalista usava a expressão para dizer o oposto do seu significado habitual, isto é, combater.
É que, se a palavra travar isolada significa, de facto, «fazer abrandar« ou "refrear", a expressão travar combate significa "iniciar ou começar um combate".
Com o mesmo sentido, usa-se em travar amizade ou travar conhecimento.
Mais um exemplo da degradação do português (?) utilizado nos jornais "de referência"(?!)», escreve António Dias.
O reparo do leitor de Lisboa é pertinente, mas é importante explicitar o seguinte:
1 – A notícia não contém a expressão travar combates.
2 – Os títulos são elaborados e/ou escolhidos pelos editores ou pelo director de fecho.
3 – Jorge Heitor não é o responsável por este erro.
O Público errou.
«O verbo travar assume diversos significados. É muito vulgar a sua utilização com o significado de «diminuir ou fazer cessar um movimento», "prender com um travão", mas também tem, entre outros, o significado de "principiar, encetar, entabular, começar" (travar conversa, amizade, conhecimento com).
E utiliza-se especificamente nas expressões travar o combate, travar a batalha, travar uma contenda, travar a luta, construindo, nestas expressões, o sentido de combater, pelejar. Aliás, o próprio termo travar isolado também tem o significado de «lutar», «combater», de que são exemplo as seguintes abonações (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira): «… Os israelitas aqui com os romanos se travaram, e, de tal maneira, que de mui longe se ouvia o encontro das armas», Samuel Usque, Tribulações de Israel, II, pág. 20; »Reclamando então as espadas… saíram para o horto e travaram-se valentemente", Coelho Neto, Apólogos, pág. 209», esclareceu a professora Maria Regina Rocha, do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.
Daniel Sampaio e o bullying
O psiquiatra e escritor Daniel Sampaio contesta uma opinião do provedor.
«(...) O leitor Manuel Costa protesta com o uso do termo bullying, afirmando que "o recurso a estrangeirismos é justificável quando não existe uma expressão equivalente em português.»
Ora o problema é mesmo esse: não existe termo português com significado sobreponível, pelo que a sua conclusão de que o «reparo é pertinente» não está correcta.
Com pena verifico que não leu a minha crónica na [revista] Pública sobre o assunto. Lá também lamento que não se use um termo português, mas chego à conclusão de que este não existe. As traduções de intimidação (como propõe Manuel da Costa), provocação ou de vitimização não são válidas, porque o que caracteriza o bullying é a humilhação sistemática, organizada e territorial, de uma pessoa ou grupo de pessoas (os agressores) para com uma pessoa ou grupo de pessoas (as vítimas), perante outros que nada fazem (as testemunhas, para não utilizar outro anglicanismo, os bystanders). Bullying significa sempre terror, controlo territorial e humilhação sistemáticos, feito por um mais forte em relação a um mais fraco (por ser menos musculado, de outra etnia ou de diferente orientação sexual). Eu posso intimidar e não fazer bullying: quando digo uma piada sobre um colega, este pode ficar intimidado; mas eu posso dar conta disso, pedir desculpa e não voltar ao mesmo, aceitando que o colega, logo a seguir, me faça também alvo do seu gozo. Este comportamento só passa a ser bullying se eu não tiver o sentido do dano que provoquei no outro e, sem arrependimento, continuar a humilhá-lo.
Penso que estes exemplos mostram bem que o bullying é um conceito sobre um comportamento, e não apenas uma palavra a traduzir. À falta de melhor, temos de continuar com o estrangeirismo», escreve Daniel Sampaio.
O provedor considera que uma notícia deve ser rigorosa, completa e clara.
Muitos leitores desconhecem o significado da palavra bullying.
Assim sendo, o jornalista, ao optar pelo recurso ao anglicismo, devia ter explicado o respectivo conceito (em nome da clareza), mas não o fez.
Para o The New Lexicon – Webster’s Dictionary da língua inglesa, bully quer dizer «someone who enjoys oppressing others weaker than himself» («alguém que aprecia oprimir os mais fracos», tradução do provedor). De acordo com a mesma obra de referência, Bullying é um tempo verbal.
Em Portugal, o vocábulo bullying é pouco menos que uma nebulosa.
O reparo do leitor Manuel da Costa continua, portanto, a ser pertinente, porque a generalidade dos leitores do Público não tem sobre a matéria a bagagem científica que se reconhece ao Professor Daniel Sampaio. E, por outro lado, nem toda a gente domina a língua de Shakespeare (e do prosaico Bush).
Cf. O português do Brasil e a “mania de macaquear” com estrangeirismos
Texto do provedor dos leitores do jornal português Público, Rui Araújo, do dia 10 de Junho de 2007, com o título original “O melhor jornal da paróquia”. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.