« (...) [S]e a palavra existe e a ideia pode ser expressa em português, qual a justificação para copiar e usar a inglesa? (...)»
A guerra na Ucrânia não tem impedido os leitores de ver as outras notícias com atenção e de exercer o seu espírito crítico. A repetida utilização pelo Público da palavra secretas, quando se refere aos serviços de informação portugueses, indigna o leitor Pedro Vareta:
«Em que legislação estará escrito que os Serviços de Segurança SIS e SIR são ‘secretas’? Que intoxicação propositada e deliberada leva a que um jornal que se pretende credível use vocabulário de PREC? […] Os jornalistas e responsáveis do Público desconhecem que em qualquer democracia civilizada os serviços de informações, e quem lá trabalha, são altamente considerados como gente do melhor que esses países têm? […] Em qual título internacionalmente credível se usa essa designação do PREC para os serviços de informação? Com que justificação ataca o Público um serviço de Segurança e Defesa Nacional?»
Encaminhei o protesto para o director adjunto Tiago Luz Pedro, que explica assim a posição do jornal:
«O uso da expressão "secretas" para designar serviços de informação como o SIS, SIRP ou SIED não tem qualquer conotação depreciativa e muito menos visa menorizar, ao contrário do que sugere o leitor, a relevância desses serviços no quadro do aparelho do Estado. Como sempre fizemos, usamo-la apenas à laia de convenção para designar genericamente qualquer serviço de informações, sejam eles nacionais ou estrangeiros, como a CIA, MI6, Mossad ou FSB. Qualquer leitor compreenderá o seu significado e não retirará do seu uso qualquer juízo crítico.»
No que respeita a serviços de informação, o Livro de Estilo, no capítulo consagrado às siglas, nomeia apenas a CIA norte-americana (embora refira a defunta PIDE e a Stasi, «polícia política da ex-RDA»), mas nada diz sobre os serviços portugueses. Esta omissão deixa aos jornalistas a possibilidade de lhes chamarem como lhes aprouver. Chamam-lhes “secretas”. Todavia, numa época em que tanto se apela à transparência e se valoriza a sua aplicação na vida pública, é natural que a utilização da palavra “secretas”, com a carga histórica que ela acarreta no caso português, tenha uma conotação negativa.
... O inglês
Ainda no domínio das “secretas”, a cavalgada triunfante da língua inglesa em terras lusitanas leva ao uso da expressão "serviços de inteligência” – uma tradução aproximativa de intelligence service – para referir serviços de informação. O provedor já ouviu o jornalista apresentador de um noticiário televisivo declarar que «os serviços de inteligência» são um player importante na cena internacional, e um outro garantir que a “inteligência” americana fez já não sei que coisa maravilhosa na Ucrânia… Valha-nos Saint Anthony, como dizem os lisboetas – e diz o provedor, que não consegue abordar o uso do inglês a torto e a direito com a devida sisudez, que me perdoem os leitores a quem possa desagradar o meu fraco sentido de humor.
Muitos jornalistas portugueses – sobretudo nas televisões – parecem estar em conflito aberto com a nossa língua, enquanto namoriscam com o inglês. Trata-se de algo que irrita os leitores do Público e os leva a protestar. «Cada vez mais aparece no Público a palavra da moda: "resiliência», constata o leitor Jorge Santos. «Esta palavra tem origem na Física. Porque não voltam atrás (ou seja, desde que o Público existe) e não usam as palavras que sempre se usaram nestas situações: ‘resistência’, ‘perseverança’, ‘persistência’, etc.?»
De facto, qualquer das palavras citadas por Jorge Santos seria mais correcta, mas, que diabo!, também seria menos cosmopolita… E, depois, que seria da nossa classe política, se lhe tirassem a poderosa “resiliência” e lhe deixassem apenas a nossa resistência?
Ainda no domínio das siglas, protesta o leitor Carlos Coimbra a propósito do título da notícia «CEO da Galp: "Se as petrolíferas só investissem em renováveis, o mundo parava"»: «Ora, se no texto é usado o essencialmente correcto "presidente executivo", porquê usar um acrónimo inglês no título? E, já agora, director executivo até me parece mais apropriado do que presidente executivo.»
Todas as línguas se enriquecem em contacto com outras. Assim é desde o grego antigo, que tanto contribuiu para engrandecer o latim. A linguagem humana, designadamente no que respeita à formulação de conceitos mais abstractos ou a termos técnicos recém-nascidos, só ganha com isso. Mas se a palavra existe e a ideia pode ser expressa em português, qual a justificação para copiar e usar a inglesa? Sem aludir a este caso em concreto, mas em abstracto, evidentemente, vejo quatro explicações possíveis: provincianismo, snobismo, lei do menor esforço ou complexo de inferioridade linguística. Admito que possam acumular, mas nenhuma é exaltante... Parece que à falta de copiarmos o que permite aos países anglo-saxónicos serem invejavelmente desenvolvidos, copiamos meia dúzia de palavras, para fazer de conta…
Uma coisa é certa: o Livro de Estilo não contempla a sigla ou o acrónimo CEO. Por conseguinte, a sua utilização pelos jornalistas do Público deve ser evitada, ainda que isso pese no tamanho dos títulos e mande para o caixote do lixo uma “bengala” que, por muito que esteja na moda, não deixa de ser isso mesmo, uma “bengala”.
… E para o que é, qualquer avião serve
Um outro leitor, que se identifica, mas pede anonimato, indigna-se veementemente com a fotografia que ilustra o artigo "Voos de jactos russos com matrícula portuguesa denunciados por Rui Pinto estão a ser investigados". A notícia foi editada pela jornalista Mariana Adam. O título diz tudo sobre o tema e o provedor dispensa-se de o sintetizar. A foto em causa é de um avião C-130, um quadrimotor a hélice. Escreve o leitor: «Bastava terem obtido uma foto do avião a que se refere a notícia, ou de um avião do mesmo tipo, que é muito diferente do C-130: mais pequeno e com dois motores jacto instalados na cauda do avião.»
O leitor considera que o lapso é grave, porque «a fotografia é de um avião que existe na Força Aérea Portuguesa e que tão bom serviço tem prestado, inclusive em evacuações humanitárias, tarefas diametralmente opostas à acção e ao comportamento dos oligarcas russos». E conclui: «Garanto que para qualquer leitor minimamente familiarizado com a aviação, essa ilustração, para além de errada, é também ridícula.»
O leitor tem razão no seu protesto. Uma hipotética lufa-lufa na hora do “fecho” só em parte explica o sucedido, sem o justificar. Ainda no registo da ironia, o provedor espera nunca ver a fotografia de um petroleiro a ilustrar uma notícia sobre uma regata…
De acordo com o Livro de Estilo, a fotografia é «um contraponto informativo e dramático do texto». A do avião C-130 não é.
Considerações do Provedor do Leitor do Público, na edição deste jornal de 2 de março de 2022.