Texto publicado no Público de 27/12/2015, da autoria Manuel Matos Monteiro, sobre a anglicização do discurso que endeusa a tecnologia.
A antropomorfização e o terror dos mercados, a sacralização e a sexualização da tecnologia são insidiosamente servidas, como se caminhássemos inexoravelmente para uma utopia tecnocapitalista, com o inglês como o novo esperanto.
Proposição Número Um: Vivemos tempos em que o léxico utilizado pela maioria dos escreventes e dos falantes é cada vez mais curto.
George Steiner afirmou: «Shakespeare usava 24 mil palavras. Num estudo muito recente, pela companhia telefónica americana Bell, o total de palavras usadas por 90 por cento dos americanos ao telefone é de 150 palavras» [entrevista à revista Ler]. Acrescente-se que, menos distante no tempo, James Joyce, apenas numa obra (Ulisses), recorreu a mais de 30 mil palavras diferentes. Vasco Pulido Valente observou, neste jornal, que quando se dedicou a reler a obra inteira de Camilo, verificou que muitas palavras já não estavam nos dicionários. Uma pergunta aos jornalistas e políticos: por que razão, de repente, o único verbo para aplicar, conceber, executar, desenvolver políticas é “desenhar”?
Proposição Número Dois: O idiolecto, os modismos, os bordões linguísticos de determinado tempo e determinado espaço são simultaneamente reflexo e mecanismo reprodutor do pensamento dominante.
Concentrando o olhar na linguagem pública portuguesa, epifenómeno dos ventos dos tempos actuais globalizados, respigamos: «Esperemos para ver como os ________ irão ouvir estas propostas», «O problema principal é: como irão reagir os ________?», «Os ________ espirram e os juros disparam», «Que dirão disto os ________?», «Os ________ é que não acharão muita graça a esta situação», «Os ________ tremem perante a situação de novas eleições», «Os ________ não estarão certamente satisfeitos».
A palavra omissa é “mercados”. O leitor não alienígena muito provavelmente detectou-a. A antropomorfização é completa – eles irritam-se, eles espirram, eles tremem, eles ouvem, entre muitos verbos que por aí circulam. De tão intoxicados, deixámos de atentar no lado cómico – eles até recomendam cortes de cabelo à dívida (o haircut da dívida). O que os distingue de nós, humanos, é a sua omnipotência. Essa entidade sem rosto nem nome nem lugar é hoje o juiz último, a fortificação intransponível, aquilo que torna tudo o resto irrelevante e que tem a faculdade soberana de rotular de “lixo” países, e ainda de ameaçar descer na hierarquia pejorativa os países que venham a adoptar determinadas medidas.
Se, noutro século, Hegel entendeu que a leitura do jornal era a oração matinal do Homem moderno, hoje, especialmente para as novas gerações, as “novidades” das redes sociais, o acto de consulta do correio electrónico e das notificações da tecnologia são a nova oração matinal. Os telemóveis e afins passaram a ser uma extensão do corpo e a sua privação corresponderia para muitos a uma amputação.
Parafraseando George Orwell, o que está diante do nosso nariz é aquilo em que é mais difícil repararmos. As ressonâncias religiosas na linguagem tecnológica não são poucas – estamos “ligados”, estamos na “Rede”, “salvamos” documentos. O próprio conceito de lar é transferido para a tecnologia – entramos em “salas de conversação”, em que temos inúmeros “amigos”, abrimos “janelas”. Alguém nas hierarquias obscuras nos pergunta como nos sentimos, de modo que partilhando publicamente um grânulo do nosso mundo interior, atenuemos a solidão, afaguemos a nossa vaidade, aliviemos a tralha que nos enraivece e alimentemos a bisbilhotice. (Juro que tenho um telemóvel baratíssimo que, quando ligado, me pergunta: «Como está hoje?»)
Além da invasão de termos técnicos que despolitizam e desumanizam (sejam os hedge funds ou o “plafonamento”) e fazem o cidadão comum crer que o melhor é deixar os assuntos que não entende, porque deliberadamente veiculados numa linguagem cifrada para a maioria, aos especialistas analfabetos escolarizados que por aí pululam, assistimos a uma emergente, repulsiva e metuenda capacidade de metaforização – tradicionalmente devedora do amor, dos elementos da Natureza, da beleza, da sensualidade – ocupada por vocábulos da tecnologia e da gestão: reset, shutdown, upgrade, input, output, downsizing. «O programa do partido precisa de um upgrade», «Tens de fazer reset ao que ele disse». Mais curioso e sinistro é observar que a ideia de beleza e de sensualidade se funde com os objectos tecnológicos. Não serei certamente o primeiro a ter ouvido e lido que determinada tecnologia "é sexy" e quais as características físicas (parece que a pouca grossura é uma delas) que tornam um objecto tecnológico num objecto de desejo. Emiliano Nicoloro, consumer product manager (como se apresenta) da marca Asus, fala mesmo de uma «série de características que poderiam entrar no que seria um cânone de beleza tecnológica».
A antropomorfização e o terror dos mercados, a sacralização e a sexualização da tecnologia são insidiosamente servidas, como se caminhássemos inexoravelmente para uma utopia tecnocapitalista, com o inglês como o novo esperanto.
Será um truísmo reconhecer que os anglicismos (mormente oriundos da gestão, da finança e da técnica) inundam a linguagem pública. Recentemente, um dos três opinantes da Quadratura do Círculo tacteava em busca da palavra certa e soltou overlap (sobreposição). Num programa de debate na SIC Notícias, uma preeminente figura de um grande semanário dizia, visivelmente satisfeito, Why not?, depois de apresentar uma “solução” política. Se aqui os refiro, não é por serem casos isolados, mas sintomas do espírito do tempo. Camilo Lourenço ou José Gomes Ferreira são exemplos bem mais tenebrosos desta novilíngua.