«Os povos que dependem económica e intelectualmente de outros não podem deixar de adoptar, com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem que lhes não são próprias. O ponto está em não permitir abusos e limitar essa importação linguística ao razoável e necessário. Contido nestes limites, o estrangeirismo tem vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tornando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comunicação das ideias gerais. Uma coisa é necessária, quando o estrangeirismo assentou já raízes na língua nacional: vesti-lo à portuguesa.». Manuel Rodrigues Lapa, in Estílistica da Língua Portuguesa, sobre os excessos e os limites – mas também a inevitabilidade – do recurso aos estrangeirismos.
Quando quisermos estudar o problema dos galicismos, assim se chamam os termos ou locuções afrancesadas que abundam na nossa língua, devemos ter sempre presente (…): a verdade é que a nossa própria liberdade tem uma raiz francesa. Não é pois de estranhar que, acompanhando nós através dos séculos, com maior ou menor intensidade, o prestígio da cultura francesa, tenhamos recebido na nossa a marca da sua língua.
O problema é sobretudo um problema de ordem moral, que deve ser posto desta maneira: a influência de uma cultura como a francesa, onde predominam a razão e a claridade, só pode ser benéfica para nós, com uma condição: que, em vez de nos escravizar ao estilo francês, estimule e clarifique as energias do nosso portuguesismo.
E, na verdade, é assim que ela tem operado entre nós. Dois exemplos: no século XIII tivemos uma escola magnífica de poesia lírica. Foi a França que lhe deu o impulso inicial; a língua dos nossos trovadores acusa naturalmente um ou outro galicismo; mas essa influência estrangeira fez rebentar as fontes do nosso lirismo nacional, que se desentranhou em obras admiráveis. Outro exemplo: no primeiro quartel do século XIX dá-se entre nós o movimento literário do Romantismo, sob o impulso de ideias que vieram de França, da Inglaterra e da Alemanha. Pois esse empurrão estrangeiro nada mais fez do que dar à nossa literatura uma orientação profundamente nacionalista e humana. São disso prova as grandes figuras literárias de Garrett e Herculano.
Contudo, a nossa facilidade de imitação e aceitação de modas estrangeiras pode conduzir-nos a excessos. E, de facto, sempre que surge uma vaga de francesismo, há um período de imitação desordenada, efervescente. Logo depois se estabelece o equilíbrio, e na língua só ficam, por via de regra, os vocábulos que oferecem qualquer novidade. É inútil e até grotesco berrar contra isso. A adopção dos estrangeirismos é uma lei humana e particularmente portuguesa: constitui como que uma fatalidade, devida aos intercâmbios das civilizações. A língua, especialmente o vocabulário, só tem a lucrar com isso. O ponto está em que essa imitação não exceda os limites do razoável e não afecte a própria essência do idioma nacional.
[Por exemplo, o] galicismo abandonar, que hoje está integrado definitivamente na língua e não é positivamente nela um "verbo de encher", como demonstrámos; corresponde a uma necessidade de expressão sentimental, que nenhum dos sinónimos preenche tão bem. Bastava isso para justificar o seu emprego. É essa, com efeito, a grande lei que rege ou deve reger a adopção de estrangeirismos: deverão ter acolhimento, quando correspondam efectivamente a necessidades de expressão.
o sentido das novas palavras
Vejamos alguns exemplos. A palavra bibelot (leia-se bibelô) designa aqueles objectozinhos de arte, jarras, estatuetas, figuras, caixas, etc., com que embelezamos os aposentos da nossa casa. O termo sugere três ideias fundamentais: o pequenino, o gracioso, o artístico. A moda dos bibelôs veio-nos de França, e é um produto com que a arte francesa adornava os salões fúteis e delicados do século XVIII. Introduzida a moda e portanto o objecto em Portugal, veio com ele o nome, pois era coisa desconhecida entre nós. Assim se originam os estrangeirismos.
Pretendem os puristas, gente no geral pouco compreensiva e virada sempre para o passado, substituir esta palavra por outras, com sentido mais ou menos semelhante. No fundo, é a velha e errónea concepção do sinónimo. Já vimos que não há nem pode haver palavras com valor absolutamente igual. Procuram pois esses legisladores da república linguística substituir com vantagem o francesismo por palavras como: galantarias, bugigangas, brincos, brinquedos, objectos, artefactos, futilidades. Um até, o professor brasileiro Carlos Góis, no seu Dicionário de Galicismos, pretendeu substituí-lo pelo termo teteia, que em luso-brasileiro significa mimo, brinquedo.
Um pouco de inteligência e de bom senso mostra-nos logo o ridículo e mal-fundado de tais substituições. Nenhuma daquelas palavras é capaz de exprimir o conjunto de ideias contido no vocábulo bibelô. O termo bugiganga é talvez o que mais se aproxima; mas contém uma ideia um pouco pejorativa de «coisa insignificante e não artística», que o distancia infinitamente de bibelô. Enfim, toda a gente continua, com imensa razão, a dizer bibelô, enquanto um ou outro purista persiste em escrever «bugigangas».
Uma outra palavra, que a moda francesa impôs ao nosso vocabulário: coquete, para designar a mulher que veste bem e gosta de agradar. Tinha a língua, no seu velho fundo, uma bonita palavra que designava quase a mesma coisa: garrida (garridice)... Esse vocábulo foi caindo em desuso e passou unicamente a empregar-se como qualificativo de cor. Exemplo: «Um vestido de cores garridas», isto é, berrantes, vistosas. Já o grande escritor português Almeida Garrett, que era um janota, dizia a respeito deste termo: «A palavra coquete não é portuguesa; mas não há remédio senão aceitá-la e dar-lhe carta de naturalização, desde que a cousa se aforou tanto entre nós.» Pode portanto quem quiser empregar a palavra garrida para qualificar a mulher janota e galante. Simplesmente, o vocábulo produz em nós certo efeito evocativo: conduz-nos a um mundo antigo, de que estamos já desabituados. Soa como um arcaísmo, e perde nisso parte da sua força expressiva. É pena, talvez; mas é assim.
Um terceiro caso, o anglicismo lanche. Se disséssemos na cidade merenda em vez de lanche, como pretendem os puristas, cometeríamos uma falta de gosto, que nos tornaria ridículos. É que merenda evoca um ambiente rural, é quase uma expressão técnica das fainas do campo. Não serve portanto para a gente da cidade.
até dos melhores estilistas
Há porém casos em que o estrangeirismo representa uma inovação escandalosa e indesejável, por absolutamente desnecessária. Repare-se que, mesmo aqui, os nossos maiores estilistas, que se nutrem principalmente de literatura e ideias francesas, estão cheios de pecados contra o purismo do vocabulário. O próprio Camilo Castelo Branco, que é um formidável vernaculista, e que tanto bramava contra o emprego dos estrangeirismos, abunda neles. Dois exemplos apenas:
1. «O destro jardineiro tira prodigiosas flores, redobrando e rajando as pétalas, que abrolhavam; anos antes, singelas, bem que formosas, na mesma tige» (Dispersos, III, pág. 485).
2. «O que no ano passado corria despercebido escutou-se agora atentivamente» (Dispersos, III, pág. 325).
A palavra tige é um despropositado galicismo, por «haste», «caule», «p»"; e atentivamente está por «atentamente». Sem dúvida, para Camilo, num momento dado, tige não exprimia a mesma coisa que «haste», «caule». A palavra sugeria-lhe, evidentemente, outras representações; por isso a empregava.
No Brasil, um grande escritor como Machado de Assis também não evitou inteiramente o galicismo, como se vê deste exemplo: «Ambos tinham que reprochar (censurar) um ao outro. O casamento absolvia-os» (Iaiá Garcia, ed. de 1952, pág. 142). Aliás, Machado, em mais de um passo, usou os termos reprochar e reproche, e teve até a coragem de justificá-los -numa nota curiosa do seu livro Papéis Avulsos, 1.a ed., pág. 265. Abonando-se com a exemplificação do dicionarista Morais e Silva, não os considera galicismos e acabou por nos dar as razões pessoais do seu emprego: «Resta a questão de eufonia: Reproche não parece mal soante. Tem contra: si o desuso. Em todo caso, o vocábulo que lhe está mais próximo no sentido, exprobação, acho que é insuportável. Daí a minha insistência em preferir o outro; devendo notar-se que não o vou buscar para dar ao estilo um verniz de estranheza, mas quando a ideia o traz consigo.»
Em dois dos nossos maiores estilistas, Eça de Queiroz é Fialho de Almeida, os pecados de francesia são frequentíssimos e por vezes até censuráveis: Vejam-se estes dois exemplos em Eça:
1. «Saíram enfim do hotel a fazer esse passeio a Sitiais» (Os Maias, I, pág. 295).
2. «Estendeu a mão; mas o primeiro aperto foi goche e mole» (Os Maias, I, pág. 225).
No primeiro exemplo, fazer um passeio substitui desvantajosamente a locução «dar um passeio», que é português de lei. Sem dúvida, Eça de Queiroz sentia mais força expressiva no verbo «a fazer» e adoptou o modelo francês. No segundo exemplo, deu ao termo francês gauche uma forma portuguesa; não se lembrou ou não quis usar um adjectivo português, que traduzisse a ideia. Os puristas dão, como sinónimos de gauche, na nossa língua: canhestro, desajeitado, acanhado, azambrado, esquerdo, zambro, lorpa, bisonho, etc. Claro que seria de mau gosto e ridícula substituir goche por canhestro, forma já desusada; precisamente os repertórios de galicismos parecem insistir nesse velho termo; mas poder-se-ia evitar o francesismo, empregando palavras bem portuguesas, como: atrapalhado, desajeitado, desastrado, ou o afrancesado, mas já unanimemente admitido, embaraçado.
Em Fialho de Almeida:
1. «levando em pós de si o olhar fetichizado» (O País das Uvas, pág. 214);
2. «as mãos — uma maravilha de finura e esquisitice» (O País das Uvas, pág. 140).
No primeiro exemplo dá-se o caso engraçado de se imitar a forma francesa, quando o francês já tinha imitado a forma portuguesa. Efectivamente, os franceses tomaram o vocábulo fétiche do português feitiço; e é na verdade estranho que se adopte esse galicismo, tendo na nossa língua a bela palavra enfeitiçado. No segundo exemplo, aquele esquisitice está por encanto, delicadeza, e, nessa acepção, é também um galicismo. A palavra existiu e existe em português com o sentido de «coisa invulgar, estranha».
a natureza da língua
Há portanto no estrangeirismo, e muito particularmente no galicismo, dois casos a considerar: a adopção de vocábulos, e o emprego de construções ou de grupos fraseológicos que contrariam a natureza da língua. Os primeiros são geralmente menos graves: porque, ou ficam no idioma, por representarem uma necessidade, e passam, nesse caso, a vestir à portuguesa: abandonar, atitude, sofá, boné, desporto, túnel, turismo, embaraçar, etc., ou são repudiados pela língua, como coisa que não serve e só teve moda passageira no falar corrente ou no livro de um ou outro escritor (ex. goche, tige).
Os segundos, que constituem propriamente um decalque da construção estrangeira, são mais perigosos, porque podem envolver uma desnaturação mais grave da forma de pensar portuguesmente. Pertencem a este grupo certas locuções como: fazer a honra, fazer o conhecimento com alguém, fazer um passeio, ter lugar (por «efectuar-se», «realizar-se»), de maneira a, enquanto que, o emprego abusivo da preposição em (vestido em seda), o uso irregular do gerúndio, etc. A seu tempo trataremos alguns destes casos, nos seus devidos lugares.
Não vá o leitor concluir de tudo isto que nem Camilo, nem Eça, nem Fialho conheciam bem o português, pois que o desfeavam com máculas de estrangeirismos. O emprego dos estrangeirismos limita-se, por via de regra, nesses escritores, a casos de vocabulário, o qual eles procuram colorir com auxílio do termo estrangeirado. A expressão portuguesa tinha para eles, no momento da composição, qualquer coisa de desbotado e corriqueiro, que não correspondia já às necessidades do estilo. Ou bem ou mal, é o próprio sentimento da arte e a curiosa procura do termo exacto que os leva a empregar os estrangeirismos. No mais, a sua língua é portuguesíssima de lei; e as suas audácias expressivas, se tiveram inconvenientes, também tiveram as suas vantagens. Em estilo, como no jogo, é preciso arriscar alguma coisa para se ganhar.
[há que] vesti-lo à portuguesa»
Concluamos pois. O estrangeirismo é um fenómeno natural, que revela a existência duma certa mentalidade comum. Os povos que dependem económica e intelectualmente de outros não podem deixar de adoptar, com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem que lhes não são próprias. O ponto está em não permitir abusos e limitar essa importação linguística ao razoável e necessário. Contido nestes limites, o estrangeirismo tem vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tornando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comunicação das ideias gerais.
Uma coisa é necessária, quando o estrangeirismo assentou já raízes na língua nacional: vesti-lo à portuguesa. Os estrangeirismos mais em voga (blusa, chalé, interesse, clube, túnel, coquete, abandono, lanche, etc.) estão já incorporados no idioma, havidos e sentidos como portugueses. Aquelas palavras são empregadas por nós como se fossem nossas. Já outras, como vagon = vagão, furgon, etc., não estão ainda bem nacionalizadas. Lá chegaremos. Note-se que há um grande escritor português, Teixeira-Gomes, em cujas obras se nacionalizam deliberadamente os estrangeirismos: bulevar, bibelô, sofá, pompadur, abajur, etc.
O estudioso terá talvez empenho em consultar algum repertório de estrangeirismos. Temo-los, numerosos, entre nós. Aqui lhe damos a lista dos principais: Cândido de Figueiredo, Estrangeirismos; Carlos Góis, Dicionário de Galicismos; Silva Bastos, Estrangeirismos; Vasco Botelho de Amaral, Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (o mais recente e completo). A consulta de tais livros pode ter seus perigos para o principiante. Feitos com a preocupação exagerada do purismo clássico, com duvidoso discernimento e, por vezes, acentuado mau gosto; dão, para traduzir ideias modernas, termos antiquados, aproximações e perífrases, como se a preocupação de quem deseja escrever bem não fosse a busca do termo justo, lapidar, breve. Para o aprendiz de redacção o melhor ainda é a prática de escrever com liberdade e os conselhos e correcções dum mestre experimentado.