O conflito entre a Rússia e a Ucrânia está não só a abalar o mundo como também, no caso português (e noutros não será diferente), a própria língua, que se vê na necessidade de referir novas realidades e de designar locais, pessoas ou acontecimentos respeitantes a realidades distantes e com pouca tradição de referência na língua
Este fenómeno, como é hábito, gera imediatamente fenómenos de criatividade linguística que se convertem, por exemplo, em neologismos. Encontramo-los em palavras como sovietologia e putinologia, que mimetizam o processo de formação de palavras com recurso à junção de radicais ou de um radical a uma palavra. Assim, em sovietologia associam-se os radicais soviet- e -logia por meio do interfixo o para traduzir a noção de «estudos da forma de ser/agir soviética». Já em putinologia associa-se o nome próprio Putin ao mesmo radical -logia, para traduzir a ideia de «estudos da forma de ser/agir de Putin».
A comunicação social, que acompanha detalhadamente o evoluir da situação, viu-se ainda na necessidade de fazer constante referência a topónimos. O mais frequente é naturalmente Ucrânia, que constitui a forma portuguesa de Українa, transliterado como Ukraïna e que etimologicamente significa «terra de fronteira, marca». Note-se que no Dicionário Houaiss encontramos registo da forma Ucraína (s.v. ucraniano), que, no entanto, é descrita como pouco usada.
Relativamente às cidades que mais recorrentemente têm sido mencionadas, é de registar que algumas contam já com formas aportuguesadas e relativamente estáveis. É o caso de Quieve ou Kiev, formado a partir em russo Киев (romanização Kiyev), muito embora, internacionalmente, em documentos oficiais se tenha tornado recorrente a romanização Kyiv, do ucraniano Київ.1 A forma Quieve, ajustada à ortografia portuguesa, tem registo no Dicionário Toponímico associado ao Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa. Não obstante, refira-se que o Código de Redação Interinstitucional para o português na União Europeia apresenta apenas forma Kiev[*].
O nome Crimeia, por seu turno, constitui uma forma aportuguesada já estabilizada, com registo, pelo menos, desde 1940 (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP – da Academia das Ciências de Lisboa – ACL). Terá sido adaptada do francês Crimée ou do italiano Crimea, formadas a partir do russo Крым (romanização Krym) e do ucraniano Крим (romanização Krym).
A cidade de Rostov (sobre o rio Dom ou Don, no sul da Rússia), também mencionada com frequência, tem registo de uma forma portuguesa, Rostóvia (Dicionário Lello, VOLP de 1940 da ACL e Dicionário Onomástico da Academia Brasileira de Letras), embora não exista tradição do uso desta forma.
A situação tem ainda convocado o nome Ossétia, região etnolinguística localizada nas duas vertentes do Grande Cáucaso, que se formou a partir do etnónimo osseta, nome de um grupo étnico iraniano. Este último termo tem tradição em português e dele se forma Ossétia, que ocorre no Dicionário Houaiss, mas não tem tradição de uso.
Para além destes nomes que viram já as suas formas ficarem mais próximas da grafia/fonia portuguesas, no atual momento informativo, encontramos nomes de localidades que ainda não tem um correspondente adaptado ao português, como é o caso Luhansk, Bryansk, Klimovo, Donbas/Donbass, Donetsk. No que respeita as estas duas últimas, observe-se que, internacionalmente, Donbas é a transliteração do ucraniano Донбас e Donbass, a do russo Донбасс; sobre Donets, existe registo da forma Donetz (Dicionário Enciclopédico Lello) para referir o rio, mas esta não parece preferível a Donets, romanização do ucraniano Донець e do russo Донец, formas em que a letra ц se translitera como ts na romanização. Não é de excluir que a forma que este hidrotopónimo tem em alemão – Donez – tenha de alguma maneira influenciado a grafia Donetz, exibida no Dicionário Enciclopédico Lello.
Note-se, para terminar que, geralmente, não havendo tradição de forma portuguesa, se adotam as formas internacionais, geralmente romanizações, frequentemente condicionadas pelo inglês ou por outras línguas com projeção internacional e com agências noticiosas de impacto internacional.
1 Para o ucraniano, há uma transliteração oficial, em vigor desde 2011 – ver "Romanization System in Ukraine", documento do grupo de especialistas em nomes geográficos da Organização das Nações Unidas (United Nations Group of Experts on Geographical Names – UNGEGN). Do mesmo grupo, ver também listas de topónimos da Ucrânia e da Federação Russa com transliteraçâo em alfabeto latino. Na prática, o critério tem sido o de, sempre que se translitera para o alfabeto latino um topónimo ucraniano, a base ser o topónimo em ucraniano, e não em russo, ao contrário do que era prática no período soviético. Agradecemos a Ana Carina Prokopyshyn (Centro de Línguas e Culturas Eslavas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) a partilha de informação sobre a transliteração dos topónimos da Ucrânia e da Federação Russa.
[* N. E. (07/03/2022) – A forma russa Kiev , que se pronuncia [ˈkʲi(j)ɪf], está na origem do aportuguesamento Quieve, que se pronuncia como se escreve e tem registos em português, pois já se encontra, por exemplo, numa edição de 1959 do Dicionário Enciclopédico Lello. Entretanto, como as autoridades ucranianas consideram que os topónimos ucranianos devem ser usados na forma ucraniana mesmo quando se trata de transliterações (ver nota 1,a cima), tem circulado na comunicação social em português a forma ucraniana Kyiv, que, em ucraniano, soa aproximadamente como "quíive" e que em português de Portugal se tende a articular como "quive". Em suma, em português, existem, por enquanto, três usos aceitáveis, pelo menos, do ponto linguístico: o aportuguesamento gráfico e fonológico, Quieve; a forma russa Kiev, que mantém a grafia da transliteração internacional em alfabeto latino mas, entre falantes de portugueses, se pronuncia como Quieve; e a forma ucraniana Kyiv, de introdução mais recente, que se tende a pronunciar como "quive".]
Adenda
Da atualidade sobre o conflito ucraniano-russo, destacam-se também as seguintes palavras e expressões:
boomerang e bomerangue, forma aportuguesada (as sanções têm um efeito boomerang sobre quem as decreta», "Martins da Cruz: 'Crise na Ucrânia reforçou a NATO'", Diário de Notícias, 26/02/2022) – bomerangue é o aportuguesamento de boomerang, grafia inglesa de empréstimo de uma língua australiana hoje extinta (regista-se em 1798 a variante wo-mur-rang, segundo o Online Etymology Dictionary, consultado em 08/03/2022).
Chernobyl (Chernóbil) e Chornobyl (Chornóbil) («Trabalhadores de Chernobyl estão em "exaustão moral"», Observador, 04/03/2022 – a primeira é o aportuguesamento (também possível Tchernóbil) da grafia internacional (ou inglesa) Chernobyl, correspondente a Чернобыль, forma do topónimo ucraniano em russo; em ucraniano, é Chornobyl transliteração da grafia ucranaina Чорнобиль,que pode aportuguesar-se como Chornóbil ou Tchornóbil, embora estas sejam, por enquanto, formas praticamente sem uso em português.
estagflação («Vem aí a estagflação por causa da guerra?», Sapo, 06/03/2022) – termo que designa «o fenômeno da estagnação (aumento da taxa de desemprego) combinado com inflação (aumento contínuo de preços)» (ver "A palavra estagflação").