O emprego abusivo do cliché caracteriza quase todos os principiantes em trabalhos de estilo. Essas séries vocabulares ficaram-lhes no ouvido, através de más leituras, de carácter romântico, por vezes. Por preguiça mental enxertam esses grupos na redacção, que adquire um jeito pretensioso e falso, e diminui, é claro, de força expressiva. O estilo é uma permanente criação pessoal. Não aconselhamos o estudioso a evitar por completo as séries usuais, o que seria aliás difícil; mas prevenimo-lo contra o emprego do cliché, muleta ridícula de preguiçosos, duma trivialidade insuportável. Ver com os seus próprios olhos, sentir com os seus próprios sentidos deverá ser a divisa de todo o aprendiz de redacção. Suponhamos que esse aprendiz queria escrever uma fantasia árabe, descrever uma noite no deserto. O pobre rapaz nunca saiu de Portugal. A apagada imagem do deserto veio-lhe de algumas leituras de terceira ordem e talvez de alguma fita de cinema. Com este material de segunda mão, desprovido de experiência, sem ninguém que o oriente, escreve talvez uma coisa parecida com isto:
«Noite encantadora! O luar banha com os seus raios argentinos o areal desértico e imenso. Tudo brilha e refulge sob a claridade branda e suave da lua. As estrelas, como milhões de pirilampos, estão disseminadas pela quietude misteriosa do firmamento. E no silêncio sepulcral do deserto, apenas cortado pela brisa rumorejante e dolente dos oásis, tudo parece contemplar o céu, meditando no enigma do infinito. Algumas poucas árvores frondosas erguem as copas altaneiras, como que orando a Deus pela solidão atroz que as envolve. Naquela noite alguém lhes faz companhia. É uma caravana. As tendas espalham-se pelo oásis, sob a abóbada das ramagens. Tudo parece dormir. Somente a lua é cada vez mais brilhante e mais bela, fazendo da areia do deserto um manto branco de virgem, a perder de vista nos horizontes longínquos.»
Tudo neste trecho soa a falso — a falsidade das coisas que não são vistas nem sentidas directamente por nós. Os clichés são em número infinito, como as areias daquele deserto postiço: noite encantadora — o luar banha — raios argentinos — areal imenso — claridade branda da lua — silêncio sepulcral — brisa rumorejante — contemplar o céu — meditar no enigma do infinito — árvores frondosas — erguer as copas — solidão atroz que as envolve — manto branco de virgem — horizontes longínquos.
Uma série de locuções estafadas, de imagens corriqueiras, que, por isso mesmo, nos não produzem a menor impressão artística. A gente sorri-se do inexperiente autor, que procurou fazer estilo, seguindo precisamente o caminho contrário: em vez de nos dar os resultados da sua própria experiência, com linguagem sua, reproduziu apenas o que anda na boca ou nos bicos da pena de toda a gente. O efeito foi desastroso.
Texto incluído no livro Estilística da Língua Portuguesa, edição Seara Nova, 1945, Lisboa