A vivência dos tempos de covid-19 desencadeou uma forte dinâmica linguística que se espraiou na criação de metáforas relacionadas com o novo quotidiano. Este facto teve lugar porque a metáfora não é apenas uma figura de retórica disponível de forma quase ornamental para usar em textos literários. Muito para além disso, a metáfora é um instrumento fundamental da cognição que se manifesta na linguagem comum, no pensamento e na ação humana1.
As metáforas estruturam a visão do mundo e denunciam-na, pois, muitas vezes, os falantes não as constroem sequer de forma consciente. O processamento do campo concetual metafórico pode acontecer de forma mais ou menos automática, pelo recurso à criação de um paralelismo entre duas realidades, que o ser humano desenha com base nos seus conhecimentos, cultura e vivências. A aproximação de uma realidade nova ou desconhecida a uma realidade já conhecida parece facilitar a compreensão porque é mais fácil conhecer as várias dimensões da novidade trilhando um caminho já conhecido.
A pandemia que se vive atualmente apresentou-se como um fenómeno ímpar e misterioso, o que fez dela um caminho fértil para o desenho de metáforas. Foi assim que o ser humano começou por se apropriar desta nova realidade associando-a ao conceito de guerra. Ainda que não tenha vivido na primeira pessoa uma situação de conflito armado, o ser humano tem facilidade em aceder ao seu esquema concetual de base. Este permite falar da nova realidade mostrando toda a periculosidade que envolve. Pode, assim, descrever-se a crise sanitária como «uma guerra», de forma mais visualista, afirmar-se que estamos num «campo de batalha» ou, invocando uma guerra brutal e mortífera, anunciar que nos encontramos nas «linhas de trincheira».
Como em qualquer campo bélico, a covid-19 envolve sempre dois lados, o do «inimigo» e o nosso. E a perspetiva é sempre esta: os seres humanos todos de um lado e os vírus todos do outro. Há os bons (somos nós – e este é o pronome mais usado para referir os “aliados”) e os maus (os vírus), que engendraram uma «invasão das nossas vidas» que «desencadeou a batalha». Esta concetualização do vírus como o «vilão» da história permite caracterizá-lo como «ubíquo», «perigoso e volátil» e até «invisível». Já os “bons” são os «companheiros de guerra» e aqueles que «resistem juntos».
Exatamente como em qualquer contexto de guerra, há momentos em que «é preciso recuar», há «cenários que fazem soar o alarme» e há quem esteja «na linha da frente». E como em qualquer guerra, temos de nos «defender dos ataques» e se a «covid mata», nós vamos construindo «vitórias contra o coronavírus» e acabaremos por «vencer a doença» porque «não somos fáceis de abater».
O impacto da chegada do vírus e o seu efeito avassalador vai sendo desenhado por outros campos concetuais que pretendem focalizar o seu impacto brutal. Um deles ativa o domínio das catástrofes naturais, colocando a tónica na sua vertiginosa ação destruidora. É assim que se fala em «tsunami coronavírus», «tempestade pandémica» e até no «inverno mais negro» e se diz que «uma avalanche se abateu sobre o sistema de saúde» ou que a zona covid dos hospitais é o «olho do furacão».
A situação que se vive foi tão inesperada e imprevisível que quase parece irreal, o que permite ativar metáforas que convocam outras dimensões para além do factual, como a onírica («o tempo parou num sonho» ou «isto é um pesadelo») ou a religiosa / mitológica («fui ao inferno e voltei», «o inferno dos hospitais»).
Guerra, catástrofe natural, pesadelo ou castigo divino são alguns dos desenhos concetuais que permitem ao ser humano conhecer melhor o «monstro». Conhecer melhor o «inimigo» é sempre meio caminho andado para lhe fazer frente e a linguagem é, com efeito, fonte de conhecimento e compreensão. Uma boa «arma», portanto.
1. Perspetiva defendida por Reddy (1979) “The conduit metaphor – A case of frame conflict” in A. Ortony (ed.) Metaphor and Thought. Cambridge, C.U.P. e Lakoff e Turner (1980) Metaphors we live by. Chicago, The University of Chicago Press.