O planeta e os seus habitantes vivem uma situação que assume contornos de que não há memórias. Esta ausência de uma situação passada equivalente ao nosso real caracteriza as nossas vivências, mas também o nosso vocabulário. De facto, não há palavras que pareçam suficientemente certeiras para descrever o que até há pouco era inexistência. Vivemos uma verdade até agora absolutamente desconhecida para a humanidade e procuramos as palavras, de que não dispomos, para a dizer.
Este vazio lexical foi sendo preenchido com novas palavras que se foram desenhando e que se impuseram: coronavírus, covid-19, SARS-CoV-2. O que era uma realidade desconhecida passou a ter contornos de existência e a palavras confirmaram-no.
Mas, falar de um facto não é só nomeá-lo, é também descrevê-lo. Também neste domínio os acontecimentos ultrapassam a realidade. Como retratar algo inaudito? Qual a fraseologia para pintar o desconhecido? As primeiras expressões a surgir apontam para a dimensão do fenómeno. Fala-se de «realidade global», de «crise planetária» ou de «vírus universal». Rapidamente, porém, as descrições evoluem combinando os sentidos do coletivo e do pejorativo. É preciso dizer que se trata de um mal comum a muitos. E assim a pandemia passou a ser uma calamidade, uma hecatombe ou uma «tragédia global». Em simultâneo, é importante realçar o caráter ignoto do fenómeno, o que leva a falar de «epidemia inédita» ou de «pandemia desconhecida». Tudo vem justificar o aparecimento de «medidas draconianas» que arrastam consigo «efeitos nocivos» e que nos fecham numa gaiola.
Os efeitos da pandemia que se vão fazendo sentir (o número de infetados que aumenta, o número de mortos que não para de crescer, os efeitos nas pessoas, na vida social, na economia…) exigem que se encontrem expressões mais fortes, mais carregadas de virulência, de peçonha e de maldade, para poderem descrever a grandeza negativa dos efeitos, a destruição que arrastam. É então que se recorre à metáfora com a sua força visual e com a sua amplitude de significados. Sobretudo a metáfora associada às forças vivas da natureza: fala-se de tormenta, de tsunâmi e de «furacão destruidor», de uma «devastação sem igual» ou de um fenómeno «nunca antes com esta magnitude».
Quando afirmar que está é a «grande crise da nossa geração» ou que esta é a «maior crise deste século» já nada tem de hiperbólico, é preciso recorrer às forças obscuras porque, de facto, o que estamos a viver só pode ser uma praga e fruto da «maior maldição dos tempos modernos», qual vingança de um deus enlouquecido, personagem de uma qualquer «tragédia» de vão de escada.
As metáforas mais fortes acenam do fundo do universo bélico e procuram evidenciar a força do confronto e o clima de hostilidade que se vive. Por isso, fala-se de fosso, combate e de guerra. Por isso, temos gente na «linha da frente» e este é o «combate das nossas vidas». Não podemos fraquejar. E o adversário neste «duelo desigual» não podia ser mais sui generis: ele é o «inimigo invisível», aquele «sem rosto», o «inimigo desconhecido» ou o «outro ameaçador».
Esta «verdadeira guerra» tem inclusive efeitos na forma como se perceciona o tempo. De repente, «os dias parecem todos iguais», mas vive-se a «uma velocidade insustentável», ao mesmo tempo que se assiste à «paralisação económica e social».
E procuramos já palavras para dizer o futuro, antecipando o que será o «novo normal», marcado pela «vigilância intrusiva», num «universo orwelliano», ou pelo «stresse pós-traumático», vivido num «cenário pós-apocalítico».
Tantas palavras recuperadas do fundo dos dicionários, exclusivas de outras memórias, individuais ou coletivas, que diziam uma história passada ou que descreviam realidades únicas. Palavras que não se juntavam. Palavras que não pertenciam ao mesmo facto. Quando voltarão a falar apenas de um passado já passado?