Antes de mais, importa localizar adequadamente o excerto que envia, para que se compreenda bem o contexto em que ocorre esse excerto e os sentidos das palavras que contém. Introduzo um excerto alargado de A Cidade e as Serras:
«Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o "D. Galião", descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta, rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto — até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
— Oh Jacinto "Galião", que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras? E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o Senhor Infante D. Miguel! Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala nobre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do "seu Salvador", enfeitado de palmitos como um retábulo, e por baixo a bengala que as magnânimas mãos reais tinham erguido do lixo. Enquanto o adorável, desejado Infante penou no desterro de Viena, o barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé Maria em Belém à botica do Plácido nos Algibebes, a gemer as saudades do "anjinho", a tramar o regresso do "anjinho". No dia, entre todos bendito, em que a "Pérola" apareceu à barra com o Messias, engrinaldou a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D. Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava de cima do seu corcel de Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia vomitando a Carta. Durante a guerra com o "outro, com o pedreiro-livre", mandava recoveiros a Santo Tirso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres, caixas de doce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retrós atochadas de peças que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando soube que o Sr. D. Miguel, com dois velhos baús amarrados sobre um macho, tomara o caminho de Sines e do final desterro — Jacinto "Galião" correu pela casa, fechou todas as janelas como num luto, berrando furiosamente:
— Também cá não fico! também cá não fico! Não, não queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado e escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos!»
Eça de Queirós, A Cidade e as Serras
O excerto em análise recorda o dia do regresso de D. Miguel, a bordo da fragata Pérola. Poderemos identificar nesse excerto uma hipérbole, na expressão parentética «entre todos bendito» e uma metáfora, pois creio que poderemos considerar «Messias» como referindo-se a D. Miguel, que, para Jacinto "Galião", era um salvador.
Ressalvo ainda que a identificação de figuras de estilo num texto depende, muitas vezes, da sensibilidade individual de quem analisa esse texto, podendo outras pessoas realçar outras figuras de estilo às quais eu tenha ficado insensível.