A língua varia, mas não à toa: um relance de alguns casos de mávariação, por Ana Martins no Sol.
Vem explicado em qualquer introdução à linguística: aquilo a que chamamos língua não é mais do que um vasto conjunto de manifestações verbais muito distintas. Dizer qualquer coisa como «a insanidade mental pode enlevar o mentecapto e conduzi-lo ao cometimento dos mais espúrios actos» é sensivelmente o mesmo que dizer: «se um tipo não andar bom do juízo é capaz de fazer asneira da grossa». Mas percebe-se logo que as duas frases têm locutores, circunstâncias e modos de comunicação diferentes. Todas as línguas apresentam uma grande diversidade de realização. O falante adquire primeiro as variantes informais e, depois, no processo de escolarização, apropria-se de estilos e géneros mais formais. Aliás, é na escola que o indivíduo inicia a actividade da escrita e a escrita é, por definição, um modo de expressão regulado e formal.
É deveras estranho, portanto, que, do meio do texto de uma notícia, toda ela escrita, como é devido, em registo corrente, desponte, incauta, uma expressão familiar. Basta uma expressão e todo o texto perde a compostura:
«a aluna agrediu também duas auxiliares (…) descreveu Manuela Caetano, fechando-se, porém, em copas quanto às razões…» (Público, 17/03/09). «Fechou-se em copas» que é como quem diz «não abriu o bico», «não disse água vai»…
«O bebé de nove meses que padecia de múltiplas doenças, e cujos pais queriam que os médicos aguentassem vivo, morreu ontem em Londres» (Público, 22/03/09). Uma pessoa com uma doença fatal mantém-se viva ou morre: «aguentar-se viva» é heróico, «aguentarem-na viva» é trágico.
Como contrapeso precário, faz-se com que a inócua expressão coloquial apareça sob o manto diáfano da erudição: em nota enviada ao Público (22/03/09) sobre a sua participação no célebre anúncio da Antena 1, Eduarda Maio diz: «Estes textos (…) mereciam-me, por isso, toda a confiança, nunca me tendo então perpassado pela ideia as interpretações que agora lhe são atribuídas». A jornalista podia ter dito simplesmente que, afinal, «nunca lhe tinha passado pela cabeça» que a frase «[a manifestação] é contra quem quer chegar a horas» (texto do anúncio) quisesse dizer o que diz.
artigo publicado no semanário Sol, na rubrica Ver como se diz, de 28 de Março de 2009