«(...) O desconfinamento será assim uma espécie de extroversão colectiva. Os algarvios, por exemplo, são mais desconfinados do que os alentejanos. (...)»
O vocabulário é uma delícia e é uma alegria observá-lo a mudar à nossa volta, sujeito às manias dos portugueses.
Ainda é segunda-feira e só hoje se reconquistou o direito ao desempenho de missões interconcelhias, mas já ouvi o verbo desconfinar a desconfinar por aí, usado conforme dá nas várias bolhas faladoras.
Já ouvi dizer desconfinar pejorativamente, referindo-se a um conterrâneo a ressacar numa esplanada em desuso, preso entre a terceira e a quarta página dum jornal desportivo, incapaz de prosseguir: “Deixa-o estar que ele está ali a desconfinar da cadela que apanhou ontem mais o Esconjurado.”
Também se admite dizer desconfinar em vez de espairecer, mudar de ideias ou soltar a bernarda.
Poderá servir como uma tradução aceitável do chavão “thinking outside the box”. Dizendo que estou apenas a deconfinar, mas que tal aproveitar a quarentena para deixar crescer as petingas até se tornarem sardinhas? E, já agora, adiar os santos populares para Setembro, para deixar crescer essas mesmas sardinhas?”.
Os vídeos de unboxing podiam passar a ser de desconfinamento. De repente, faz sentido dizer que o povo português é mais desconfinado do que desconfinado.
O desconfinamento será assim uma espécie de extroversão colectiva. Os algarvios, por exemplo, são mais desconfinados do que os alentejanos.
Na cozinha pode-se pedir a alguém que desconfine o atum duma lata. Na perfumaria deixa-se desconfinar o cheiro do pau-santo. E, para assustar os ladrões, pode-se anunciar que há sempre dobermans desconfinados por perto.
N. E. – Desconfinar é verbo derivado por prefixação de confinar, ou seja, por adjunção do prefixo des- ao verbo confinar, à semelhança da formação regular de desfazer (des- + fazer) ou desmontar (des- + montar). Quanto a desconfinamento, deriva este nome por sufixação do tema de desconfinar – desconfina- + -mento –, tal como acontece com confinamento, derivado de confinar pelo mesmo processo: confina- + -mento. O prefixo des- é bastante produtivo no uso e, portanto, revela potencial para fazer derivar palavras que nem sempre têm registo dicionarístico. Tal é o caso de desconfinar e desconfinamento que só recentemente terão entrado nos dicionários: com efeito, não constam de dicionários relativamente recentes como o Houaiss (2001), o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001) ou o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (2004), também estão ausentes dos vocabulários ortográficos, atualizados ou não (por exemplo, não se encontram no Vocabulário da Língua Portuguesa, publicado por Rebelo Gonçalves em 1966). Estão consignados, porém, no Dicionário Infopédia e no Dicionário Priberam. Mais pormenores aqui.
Crónica publicada no jornal Público no dia 5 de maio de 2020. Segue a norma ortográfica de 1945.