«A minha vida é um filme»; «Não faças filmes»;
«Tu és o meu herói»; «Ele é o vilão que me arruína»
A dimensão metafórica da cognição humana permite representar a realidade propiciando meios de apreensão dos factos que facilitam a sua compreensão. Muitas metáforas são desenvolvidas pelo contacto com realidades culturais, sobretudo aquelas que são de conhecimento comum e generalizado. A indústria cinematográfica é um dos domínios que contribuem para o desenvolvimento cognitivo de campos conceptuais como o de filme, a partir do qual de definem realidades cinematográficas estereotipadas. Na verdade, este mapeamento pode associar-se a raízes mais ancestrais que deram já origem à conceptualização de muitos contos populares ou do próprio folclore. É uma realidade que concebe as entidades dicotomicamente: há a personagem boa que luta contra a personagem má. É uma luta difícil e só há um vencedor.
Este foi um dos mapas conceptuais que absorveu a interpretação da realidade provocada pela chegada do SARS-CoV-2, vírus que foi imediatamente percecionado como «mau da fita». A metáfora cinematográfica associa-se à personificação para concretizar uma realidade não palpável (como bem o demostra o facto de o vírus ser também referido como «o invisível») e busca uma figura que possa expressar o caráter maléfico, assustador e destruidor do ser que entrou hostilmente nas nossas vidas. É assim que este passa a ser concebido como o «monstro chamado coronavírus», uma entidade tão terrífica que nos faz viver «com medo de despertar a cólera do monstro». A sua periculosidade fica também patente no facto de possuir «múltiplas facetas», o que nos leva a não saber o que dele devemos esperar. Por essa razão, neste filme, nós somos as personagens que têm de «atuar no escuro». Por vezes, somos até levados a duvidar desta realidade que se mapeia no nosso cérebro, o que fica claro na comparação que parece resistir a assumir-se como metáfora de plenos poderes: «parece que somos atores num filme de ficção».
Noutros momentos, porém, a metáfora assume-se na sua plenitude e o nosso cérebro busca figuras da indústria cinematográfica que possam traduzir os papéis que alguns assumem nesta história em constante construção. É assim que médicos e enfermeiros são concebidos como «extraterrestres» ou «astronautas», porque os vemos como se vivessem uma realidade alternativa (de facto, «há novos mundos contidos na realidade que enfrentamos») e porque a «nova realidade» exige outras indumentárias que ativam metáforas oriundas da ficção científica. Já os investigadores e cientistas são assimilados aos «detetives da covid». O que é certo é que neste filme há muitos heróis, que dão a vida, o tempo ou os sentimentos e, como bem se esclarece, «nem todos os super-heróis têm capa, alguns usam máscara».
Como em qualquer filme de ação, os bons têm de se apetrechar para o confronto. Esta preparação concebe-se sobretudo no domínio da força. É assim que se fala da necessidade de «robustez dos serviços» e da importância de «fortalecer o apoio à ciência».
Esta é uma megaprodução de contornos épicos pelo que é de esperar momentos extremos com situações inusitadas. E, de facto, assim é porque as consequências da pandemia são descritas como «situações de fome de proporções bíblicas», como os «escombros da pandemia» ou como os «efeitos apocalípticos da pandemia». Todas metáforas que partilham a ideia de tragédia levada ao limite de destruição total e inaudita.
Ainda assim, os heróis não desistem e paulatinamente vão reconquistando o seu mundo, até ao momento em que o inimigo vírus está circunscrito ao «último reduto da infeção». Muitos heróis ficaram pelo caminho e «desceram à cova de modo clandestino», mas o caminho fez-se. Ainda «há nós para desatar», mas o herói não desiste. Esperamos é que a ação deste filme não tenha previsto uma daquelas reviravoltas finais que impedem o tão esperado final “quase” feliz.