O 47.º aniversário do 25 de Abril será recordado nos anais como o ano da pandemia. E se esse facto teve consequências diretas no devir da sociedade, também as teve na linguagem, um constructo humano, essencial para a comunicação.
A necessidade de referir a nova realidade, sempre em ebulição, gerou muitos neologismos e renovou palavras com sentidos que ficarão na memória como marca deste período da história. Entre estes vocábulos, destacam-se as palavras 1covid e todas as suas derivadas (codivês, covidário, covideiro, covidices…), 2coronavírus, 3confinamento (e desconfinamento), 4pandemia, 5desinfeção, 6distanciamento e 7achatar. São termos que descrevem situações que todos bem conhecemos e que, em muitos casos, implicam uma realidade contrária à liberdade, uma das conquistas de Abril.
Estes 47 anos do 25 de Abril são também uma época dominada por anglicismos, alguns que já palmilhavam o primeiro plano linguístico e outros que ganharam destaque associados às situações que foram adquirindo proeminência. Marcam este ano 8 lay-off, 9bullying (ou ciberbullying), 10«take-away», 11«task force» ou 12CEO.
E tal como acontece em muitos segmentos da realidade, também a língua tem neste ano as suas palavras da moda. São modas que contribuem para esvaziar o sentido de palavras que se mobilizam até à exaustão, empobrecendo os usos por obliterarem outras palavras ou expressões. Entre a classe dos adjetivos, domina o 13expectável, que surge no lugar de possível, provável ou de «aquilo que se poderia esperar»; 14abismal, que ocupou o espaço que poderia também pertencer a abissal, no sentido de “profundo” ou “grande”; 15impactante é o adjetivo que passou a ser o primeiro escolhido para descrever algo surpreendente ou chocante; 16severo substitui atualmente grave, sério ou acentuado; 17humanitário tanto descreve aquele que é bondoso e procura o bem da humanidade como adjetiva uma catástrofe ou uma crise, referindo, contraditoriamente, o que causa sofrimento à mesma humanidade; 18brutal é usado sobretudo informalmente, não para referir algo desumano, cruel ou grosseiro, mas para descrever (mais uma vez contraditoriamente), algo fantástico ou extraordinário; 19disruptivo já não descreve algo fraturante, pois passou a referir essencialmente o que perturba.
Também entre os verbos, encontramos modismos proeminentes. O mais evidente será, nos dias que correm, o verbo 20confinar (ou desconfinar), que passou a aplicar-se a situações e a pessoas, desde que tenham uma ligeira ideia de encerrar ou de libertar. Noutro plano, para falar de dificuldades, diz-se 21obstaculizar (e já não opor, contrapor ou resistir). Pôr em prática é 22implementar ou 23despoletar (que perdeu por completo o sentido de impedir ou anular uma dada ação). Já não se experimenta, 24experiencia-se; já não se contrata, 25engaja-se. 26Colapsar é causar um colapso e não sofrer uma falha ou interrupção e 27evacuar já não significa defecar ou esvaziar, pois o que se evacua são pessoas.
No campo dos nomes, 28resiliência está no topo da lista dos modismos. Tendo começado por referir a capacidade de reagir a um trauma, agora aplica-se a qualquer situação que envolva esforço ou força emocional. Maleável também é o termo 29foco, que, de palavra usada para referir o ponto onde se concentra um feixe de luz, passou a designar metaforicamente algo em que se coloca o destaque ou se concentra a atenção. Na moda estão ainda os substantivos 30narrativa, 31proatividade, 32sustentabilidade, 33alavancagem, 34empregador, 35evidência, 36geringonça, 37precariedade (tantas vezes, dito “precaridade”), 38empoderamento e 39dramaticidade. Por todo o lado, encontramos também locuções como 40«à séria» (em lugar de «a sério»), 41«cometer suicídio» (em vez de suicidar-se), 42«linha vermelha» ou 43«correr atrás do prejuízo».
Igualmente frequente continua a ser o mau uso de certos verbos, como é o caso dos falsos particípios 44“empregue” ou 45“encarregue” (que deveriam ser usados como empregado ou encarregado), da forma incorreta 46“intervido” (por intervindo) e a locução 47«ir de encontro a», por «ir ao encontro de», usada impropriamente com o sentido de “concordar.
47 palavras ou expressões que ocupam o primeiro plano linguístico, das modas aos erros, passando pelas novidades. Estimulada ou maltratada, enriquecida ou depauperada, assim se encontra a língua portuguesa 47 anos depois da conquista da liberdade.