« (...) Dizer da alegada ameaça da dependência de Angola, se ratificar o Acordo Ortográfico relativamente à indústria gráfica portuguesa e brasileira (...) mais do que um falso problema (...) é um autêntico mito. (...)»
No artigo anterior sobre este tema, recordei os resultados do censo de 2014, segundo os quais a língua portuguesa é a primeira língua falada em casa por mais de 71 por cento da nossa população, o que torna Angola o segundo maior falante de português em todo o mundo, depois do Brasil.
Se compararmos este número com os dados de 1975, à altura da Independência Nacional, a conclusão é só uma: Angola fez mais pela expansão da língua portuguesa em menos de 50 anos como país livre do que a antiga potência colonial em cinco séculos de presença no território angolano. O mesmo aplica-se aos restantes países africanos de língua portuguesa.
O português exerce em Angola três papéis fundamentais: primeiro, é a única língua de comunicação nacional do país e substrato da unidade dos angolanos; segundo, é a língua oficial e da administração; e, terceiro, é o primeiro veículo de comunicação internacional dos angolanos, permitindo-lhes comunicar com os cidadãos de outros sete países e de várias comunidades onde o referido idioma é utilizado.
Ao contrário do que alguns ainda pensam, não apenas em Portugal, mas também nos outros territórios de língua portuguesa, incluindo o Brasil, maior usuário desta última, a mesma há muito deixou de ser pertença da antiga potência colonizadora. As línguas, na verdade, pertencem a todos os que a falam. Ou seja, o português não é apenas a língua de Camões, mas também de Machado de Assis, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Corsino Fortes, Alda do Espírito Santo, José Craveirinha, António Ramos Horta e tantos outros.
O facto de ser o segundo maior falante de português atribui a Angola responsabilidades acrescidas no que diz respeito às respectivas políticas, não somente internas, mas igualmente externas. Na minha modesta opinião, o país tem negligenciado tais responsabilidades.
A persistente ambiguidade e hesitação em tomar uma posição definitiva relativamente ao Acordo Ortográfico de 1990, por exemplo, confirma essa atitude. Pela parte que me cabe, tenho muita dificuldade em entender a relutância de alguns sectores em ratificar o referido acordo.
Do ponto de vista interno, Angola tem todos os motivos para ratificá-lo, pela seguinte razão de base: o Acordo prioriza a fonética em detrimento da etimologia (ou seja, tende a grafar as palavras tal como elas são pronunciadas), o que facilita enormemente a sua difusão junto de uma população para a qual, originariamente, a língua portuguesa é uma língua segunda. Em termos de grafia, essa é a tendência da maioria das línguas contemporâneas: quanto mais simples, melhor.
Os seguintes argumentos principais costumam ser utilizados para questionar a ratificação do Acordo Ortográfico de 1990 por parte de Angola: o risco de uma «colonização linguística» por parte do Brasil, a ausência de qualquer previsão de inclusão das palavras de origem africana e a ameaça da dependência de Angola em relação à indústria gráfica estrangeira (portuguesa e brasileira). Com todo o respeito, nenhum desses argumentos faz sentido.
Os números mostram, desde logo, que o Brasil fez mais concessões do que Portugal (cuja norma antiga ainda usamos), em termos do novo acordo ortográfico. Por outro lado, este é apenas um acordo sobre o modo de grafar as palavras, não tem nada a ver com o vocabulário, a fonética ou a sintaxe, ou seja, é falso que seremos todos obrigados a «falar como os brasileiros». Por fim, no nosso caso, como angolanos, não deixa de ser esquisito recear uma hipotética «colonização linguística» do Brasil. A variante brasileira da língua portuguesa foi fortemente influenciada, em termos fonéticos, lexicais e sintácticos, pelas línguas angolanas de origem africana e não se vê ninguém, nesse caso, a falar em «colonização linguística» por parte de Angola.
A verdade é que as línguas transformam-se, viajam, cruzam-se, interpenetram-se e, se «caírem na boca do povo» (assim como na literatura ou no jornalismo), não serão os puristas ou sebastianistas que impedirão as mudanças, influências e apropriações mútuas.
Quanto à alegada necessidade de o Acordo Ortográfico incluir a questão das palavras angolanas de origem africana (processo que, na verdade, e como lembrei atrás, já ocorre há séculos), é um falso problema. Esse não é um tema do referido acordo, mas do Vocabulário Ortográfico Comum. Segundo sei, este deverá ser elaborado com base nos vocabulários ortográficos nacionais, pelo que, em princípio, a bola está do nosso lado. É preciso elaborar primeiro o vocabulário ortográfico nacional e, depois disso, negociar a sua inclusão no Vocabulário Ortográfico Comum da língua portuguesa.
Finalmente, o que dizer da alegada ameaça da dependência de Angola, se ratificar o Acordo Ortográfico, relativamente à indústria gráfica portuguesa e brasileira? Mais do que um falso problema, tal argumento é um autêntico mito. Com efeito, o que o nosso país precisa, com ou sem Acordo Ortográfico, é de desenvolver a sua própria indústria gráfica. O resto é confusão de temas. Ponto final.
Angola tem igualmente responsabilidades externas em relação à língua portuguesa, o que inclui, entre outros, as seguintes questões: uso efectivo do português nos organismos regionais e internacionais, assim como na Internet; ensino da língua portuguesa no estrangeiro, desde logo no continente africano, onde vários países anglófonos e francófonos têm demonstrado interesse nisso; e internacionalização das literaturas em língua portuguesa.
A propósito, aliás, não posso deixar de evocar a relação entre alguns desses processos e o Acordo Ortográfico: a existência de uma grafia única facilitará, quanto a mim, o uso do português nos organismos internacionais e na Internet, bem como o seu ensino em países estrangeiros.
Acrescento que a CPLP deveria desempenhar um papel condutor dos processos acima referidos. Escrevo no condicional por ser claro, para mim, que a mesma está longe de desempenhar esse papel, talvez porque ainda não é reconhecido por todos, de facto e na prática, que o português (e as suas políticas) pertence a todos os seus falantes. Um sintoma notório dessa realidade é a existência de dois institutos de promoção da língua portuguesa[*].
Angola, como segundo maior falante mundial da língua portuguesa, não pode estar ausente de todos esses processos e debates. Em breve, o país assumirá a presidência rotativa da CPLP. Talvez possa inscrever estas questões na agenda.
[* N. E. (09/07/2020) – No âmbito da CPLP e tendo por função a gestão comum da língua, existem não dois, mas apenas um instituto – o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, frequentemente mencionado pela sigla IILP.]
Cf. Português, língua nacional angolana – 1 +"Português, língua nacional angolana (versão publicada no Diário de Notícias de 05/07/2020) + A questão do português de Angola + João Melo pede respeito pela soberania dos povos + Kwadi: uma língua perdida de Angola com uma história para contar
Artigo no Jornal de Angola em 8 de julho de 2020, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.