Felicidade e educação
A inspiração para forjar este discurso sobre a relação entre felicidade e língua(s) nasceu da leitura na internet de um resumo do Relatório de Felicidade Mundial 2022 (World Hapiness Report 2022), elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Nesse estudo pode ler-se que a Finlândia é, pelo quinto ano consecutivo, o país mais feliz do mundo, tendo obtido 7,8 pontos.
Os países mais infelizes do mundo encontram-se sobretudo na África e na Ásia Central. O Afeganistão teve a pontuação mais baixa (2,4 pontos), sendo seguido pelo Zimbabué e pelo Líbano (ambos com 3 pontos).
Uma pesquisa mais aprofundada sobre a Finlândia revelou que um dos motores dessa felicidade é o sistema de Educação e Ensino.
«Desde que foi lançado, em 2000, o Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA), os finlandeses de 15 anos de idade têm se saído bem. Ele avalia leitura, matemática e ciências.
A educação na Finlândia é compulsória dos 7 aos 16 anos. Os alunos recebem alimentação gratuita na educação primária e secundária.
A educação básica vai do 1.º até o 9.º ano e é pública para quase a totalidade da população – existem poucas escolas privadas no país. As classes têm poucos alunos; raramente ultrapassam o número de 20 alunos por sala. Os estudantes aprendem as duas línguas oficiais da Finlândia, o finlandês e o sueco, mais duas línguas estrangeiras. Os alunos têm também aulas de artes, música, cozinha, carpintaria, serralharia e costura.
A Finlândia é o país com mais livros infantis per capita do mundo, a actividade de leitura é muito encorajada nas escolas.»
Este dado sobre ensino das línguas e leitura a partir da escola é muito importante porque se relaciona directamente com a construção da felicidade nacional de cada país.
A importância da didáctica da língua advém de outra notícia colectada como fruta silvestre na internet, da autoria de Christophe Clavé: «O QI médio da população mundial, que sempre aumentou desde o pós-guerra até o final dos anos 90, diminuiu nos últimos vinte anos… É a inversão do efeito Flynn.»1
Pode haver muitas causas para esse fenómeno. Um deles pode ser o empobrecimento da linguagem. Na verdade, vários estudos mostram a diminuição do conhecimento lexical e o empobrecimento da linguagem: não é apenas a redução do vocabulário utilizado, mas também as subtilezas linguísticas que permitem elaborar e formular pensamentos complexos.
Menos palavras e menos verbos conjugados significam menos capacidade de expressar emoções e menos capacidade de processar um pensamento.
Estudos têm mostrado que parte da violência nas esferas pública e privada decorre diretamente da incapacidade de descrever as emoções em palavras. Sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível. Quanto mais pobre a linguagem, mais o pensamento desaparece.
Se não houver pensamentos, não há pensamentos críticos. E não há pensamento sem palavras. Como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o condicional? Como pensar o futuro sem uma conjugação com o futuro? Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de elementos no tempo, passado ou futuro, e sua duração relativa, sem uma linguagem que distinga entre o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia ser, e o que será depois do que pode ter acontecido, realmente aconteceu?
De que forma os angolanos expressam a sua felicidade na língua oficial, o português?
O desempenho linguístico e o aprendizado da língua oficial são ou não são um acumulador da felicidade geral?
Qual é a relação entre o léxico da felicidade e o desenvolvimento humano?
Em ternos de felicidade bruta, em sentido mais lato, o grosso do canto, ou do linguajar popular, que só tem incidência nas relações de permuta afectiva, contratual, encontramos alguns vocábulos e expressões em linguagem da rua.
Na relação intersubjectiva de proximidade, familiar ou de pura amizade, tornou-se um jargão comum a expressão “tá cuiá” (ou "cuiar", verbo criado espontaneamente) para designar que algo satisfaz o falante. Nessa mesma relação, se registam variantes do mesmo verbo “cuiar”, como “tá cuio”, “é do cuiuio”, “tá cuiá bué”.
No jargão das zungueiras, as nossas vendedeiras ambulantes, criou-se o termo “Arreió! Arreió!”, que empresta felicidade aos consumidores. É uma nova formulação verbal que designa a baixa dos preços dos produtos da zunga. É uma simbiose do verbo arriar («fazer descer») e arrear («colocar os arreios num cavalo»).
Outras expressões de felicidade da massa juvenil são: “tá saí procoxó!”, “tá pipocar”, “tá naice!”, “tá numa!,” “tudo natural”, “tá fixe!”, “te curto bué!” “Sô tô panque!”. Dizeres ou quase interjeições como “bis, tá baté, bateu, bué da fixe, num te conto” ou “por isso não nos gostam…” também marcam a paisagem linguística da adolescência e juventude angolana.
“Tá Gucci!” é sinónimo de alto nível de felicidade. Parece um estrangeirismo. Até que ponto é um neologismo fixado, ou uma expressão meramente factual, descartável pelo tempo?
“Bom dia, sim!” marca uma forma espontânea de estar bem, assim como “obrigado”, “graças a Deus!” e “parabéns!”
Quantos aos nomes, ele há o do cantor de kuduru, Sebem. Esse antropónimo de criação própria exala felicidade em cada sílaba. E, para dar mais raiva na cara, Sebem criou uma música que é o próprio ensaio da alegria, cujo refrão é: «A felicidade, todo o mundo gosta…»
No campo da felicidade líquida, ou seja, felicidade económica individual, realização intelectual do cidadão médio angolano, e principalmente na esfera do desempenho escolar, a língua portuguesa não alegra o mesmo cidadão, porque este, na grande maioria, não a aprende, não a domina convenientemente. Por isso, não se realiza no seu potencial humano, enquanto educador, profissional, intelectual criador científico, ou mesmo na esfera da política, como zoon politikon.
Devemos formar os professores de língua portuguesa na base do conhecimento lexical e normativo da [do idioma]. Enfim, devem ser leitores regulares de obras diversas. Ter hábitos de leitura.
Geofonias insulares
No contexto regional da SADC, a língua portuguesa constitui um colete de forças linguístico que transformou Angola numa ilha fechada por duas línguas indo-europeias (estamos a falar de comunicação internacional): o inglês e o francês, o que coarcta o índice de felicidade cultural dos angolanos.
No século XXI, o mapa geopolítico do continente africano é composto de regiões linguísticas de matriz europeia, sendo essas línguas eurocêntricas que determinam a comunicação internacional dos Estados, entre si, e com o resto do Mundo.
Neste momento, a África e os países africanos enfrentam uma crise de comunicação cultural. A nível da região austral, as línguas europeias apresentam-se como uma barreira para a construção de uma fraternidade cultural idealizada entre Angola e os dois Congos, a Zâmbia, a Namíbia, o Zimbabué e o Gabão, e até mesmo com Moçambique, país de língua portuguesa, bem como dos restantes países da SADC.
Passados mais de 50 anos do início do processo de emancipação do continente, prevalece a síndrome do isolamento na paisagem multicultural da região austral da África.
Estamos perante o fenómeno das insularidades eurolinguísticas, cujas fronteiras são as línguas de origem indo-europeia, no caso vertente, o português, o francês e o inglês.
O drama destas geofonias insulares em África reside na constatação de que, para poder comunicar e, desse modo, conhecer os produtos culturais regionais, o cidadão da África Austral tem de ter uma tríplice competência linguística ocidental (português, francês e inglês). Esta realidade eurolinguística, da qual é impossível se absterem, sob pena de perderem o comboio da História Universal e a sua ementa de Progresso Tecnológico, impõe que o ensino até aos doze anos das crianças deva forçosamente contemplar competências linguísticas eurofónicas, do português, do francês e do inglês, que depois os alunos irão aprofundar até ao fim do ensino pré-universitário, para poderem dialogar com os países vizinhos e com o resto do mundo.
Diversidade linguística
A língua constitui a primeira manifestação cultural do capital humano. Nessa fenomenologia da fala diária para expressar o sentimento de felicidade individual ou coletiva, temos que a língua traduz uma determinada visão do mundo.
A felicidade linguística em Angola ancora numa perspectiva poliglótica.
Temos de assumir a diversidade linguística local e a polivalência global das línguas de trabalho da ONU. Não somos uma só pessoa, somos uma diversidade de culturas e essa diversidade nos pede que nos desviemos do afunilamento geo-linguístico da única língua oficial.
É urgente resgatar alguns valores essenciais do nosso património ancestral, com vista a valorizar a totalidade da Cultura (feita de várias culturas) e, consequentemente, a tolerância e a inclusão do cidadão comum na construção de Angola. Um desses valores históricos, que representam a alma dos povos bantu, são as línguas e a literatura oral que delas emana.
Segundo a UNESCO, «a língua materna constitui parte essencial de uma comunidade étnica, pois carrega consigo valores e conhecimento que, frequentemente, são utilizados na prática e na transmissão do património cultural imaterial.» Para a UNESCO «a diversidade linguística e o plurilinguismo são essenciais para o desenvolvimento sustentável, porque são parte vital da educação para a cidadania global, ao promover as conexões interculturais e as melhores formas de as pessoas viverem juntas.»
A Constituição da República de Angola leva em conta estes pressupostos do desenvolvimento ao elencar, no Artigo 21.º, dentre várias as tarefas fundamentais do Estado angolano, estas em particular:
«n) Proteger, valorizar e dignificar as línguas angolanas de origem africana, como património cultural, e promover o seu desenvolvimento, como línguas de identidade nacional e de comunicação.»
Apesar dessa consagração constitucional, acumulados 46 anos de emancipação política, a educação das novas gerações apresenta uma fissura no Ensino. Esta fissura, com repercussões em outros sectores da vida social, resulta de uma inconstitucionalidade por omissão.
A Carta do Renascimento Cultural Africano assevera que «é urgente assegurar resolutamente a promoção das línguas africanas, vectores e veículos do património cultural material e imaterial naquilo que ele tem de mais autêntico e de essência popular, mas também como factor de desenvolvimento». Ora, desenvolvimento é sinónimo de felicidade, no quadro da sociedade de consumo, mas também no da melhoria da comunicação entre as diversas classes sociais e os detentores do poder político.
São, portanto, as expressões da alma que reproduzem e ilustram a africanidade. A primeira expressão da alma é a língua. Os angolanos não têm uma língua bantu unificadora. A unidade nacional está forjada sobre o legado da colonização, a língua portuguesa.
A solução que propomos é a da integração no artigo 19.º da Constituição angolana de uma língua oficial bantu, ao lado do português, visto que o uso exclusivo quotidiano, regular e prolongado da língua portuguesa, língua indo-europeia, formata no cidadão angolano uma estrutura mental eurocêntrica, sob a aparência de africanidade.
A eleição de uma língua oficial bantu, em paralelo com a língua portuguesa, criaria uma segunda fonologia do discurso oficial angolano. A par de muitos países que escolheram a língua maioritária para língua oficial, Angola pode eleger o umbundu como a outra língua oficial, por ser a língua maioritária em Angola, por já ter uma gramática e dicionário.
Hoje em dia, as grandes nações poderosas apostaram na promoção da(s) sua(s) língua(s). Os países que não tiveram essa oportunidade, não puderam chegar mais longe no que diz respeito ao desenvolvimento económico, social, cultural, político, democrático. Como fazer participar as massas no desenvolvimento democrático se não falarem as suas línguas nacionais?
Como vimos atrás, na Finlândia, o país mais feliz do mundo, os estudantes aprendem as duas línguas oficiais, o finlandês e o sueco, mais duas línguas estrangeiras.
Apesar de se colocarem várias preocupações sobre a grande diversidade linguística dos angolanos com substratos etnoculturais correspondentes, não é justo alimentar qualquer dúvida ou hesitação em propor a cooficialização da língua umbundo, a par do português, pela simples razão de que há 47 anos todos os angolanos aceitam, sem reclamar, o uso quotidiano e regular do português, uma língua indo-europeia.
Em simultâneo o Estado deveria incentivar, promover, valorizar e desenvolver as línguas nacionais nas regiões onde cada uma das línguas é falada, como defende a professora Amélia Mingas, in memoriam, «[...] Ou seja, as instituições de ensino e universidades da região Centro-Sul (Bié, Huambo e Benguela) deveriam introduzir o ensino/aprendizagem do umbundo; as do Sul (Huíla, Namibe, Cunene e Cuando Cubango), do nyaneka, kwanyama e ngangela; as do Norte (Cabinda), do fiote; (Zaire e Uíge), do kikongo; (Luanda, Bengo, Malange, Kuanza Norte, Kwanza Sul), do kimbundo; e as instituições de ensino e universidades do Leste (Lunda Norte, Luanda Sul e Moxico) deveriam introduzir o ensino/aprendizagem do cokwe. Os estudantes de outras regiões, que, por diversas circunstâncias, fossem obrigados a fixar residência permanente ou temporária numa determinada região fora da sua deveriam submeter-se às políticas linguísticas vigentes na região em que se encontram, para que, a partir da nossa pluralidade linguística, possamos construir a nossa unidade» (MINGAS, 2002).
Conclusão
Somos mais felizes com o domínio da língua portuguesa, para nos comunicarmos com maior eficiência dentro das fronteiras: comunicação intersubjectiva, comunicação pública (educativa) e comunicação administrativa. Esta comunicação será mais eficiente se a escola cumprir o seu papel de inserir quadros docentes capacitados para o ensino da língua oficial.
Seremos mais felizes com a poliglossia (inglês, francês e português, desde tenra idade), para podermos nos comunicar com os nossos vizinhos e transformá-los em nossos irmãos africanos.
E seremos mais felizes ainda se assumirmos uma língua oficial bantu. A eleição de uma língua oficial bantu, em paralelo com a língua portuguesa, criaria uma segunda fonologia do discurso oficial angolano. A par de muitos países que escolheram a língua maioritária para língua oficial, Angola pode eleger o umbundo como a outra língua oficial, por ser a língua maioritária em Angola, por já ter uma gramática e dicionário e porque, até hoje, ao 30 milhões de angolanos não apresentarem reclamações oficiais contra o uso do português uma língua navegada desde Lisboa.
Bibliografia
Carta Africana do Renascimento Cultural
CLAVÉ, Christophe, “O QI médio da população mundial diminuiu nos últimos vinte anos”, 2020/12/20 , https://dasculturas.com/
Constituição da República de Angola, 2010.
MINGAS, Amélia, in “A importância das línguas angolanas na unidade da família angolana”, site da UEA, Novembro 2002
UNESCO BRASIL, Diversidade linguística
World Hapiness Report, 2022
1 O Efeito Flynn é o nome dado para o aumento constante do índice de acerto médio da população mundial nos testes de QI. Tem esse nome em alusão ao psicólogo americano James Flynn, que em 1982 o identificou e documentou, após analisar os manuais americanos para testes de QI e perceber que esses testes eram revistos a cada 25 anos ou mais.
James Flynn percebeu que se um americano médio fizesse o primeiro teste de QI criado ele faria 130 pontos, pontuação atribuída a pessoas geniais. Da mesma forma, se o teste atual fosse aplicado a um americano médio daquela época, sua pontuação seria de 70, literalmente um resultado esperado de deficientes intelectuais.
Explicações possíveis para o Efeito Flynn, incluem a melhoria na nutrição, menos doenças infecciosas, mais educação (e mais produtiva), e ambientes mais estimulantes.
Texto de uma palestra proferida pelo autor em 11 de maio de 2022. Mantém-se a ortografia de 1945, adotada pelo autor.