« (...) No Huambo, até hoje a ligação à língua portuguesa é diferente. A maior parte das pessoas fala umbundo como língua materna. (...)»
Estava a meio da pesquisa intensa para escrever uma biografia quando lhe caiu no colo a ideia para um romance. Mestre dos Batuques (publicado pela Quetzal) materializou-se na cabeça de José Eduardo Agualusa em cinco minutos, coisa que nunca tinha acontecido ao premiado escritor.
Esta é a história de amor entre Jan e Lucrécia, mas também uma versão do colonialismo muito pouco conhecida. No Bailundo (Planalto Central), longe da ocupação portuguesa em Luanda, Angola, a realidade não foi a mesma. Na sua nova obra, o autor de O Livro dos Camaleões e de Teoria Geral do Esquecimento junta na mesma viagem temas de pertença, nação, raça e cultura.
É da minúscula e idílica Ilha de Moçambique, onde vive agora, que nos fala de uma Angola com memórias e história diferentes, da importância de reescrever o período do colonialismo, das restituições às ex-colónias e da atualidade política em Moçambique, que vai agora a votos [em 9 de outubro de 2024], e em Angola, a que está sempre atento.
Tão atento que é legítimo perguntar se não se imaginaria a ter um cargo político. «Seria a pior coisa que me podia acontecer», garante. Detesta reuniões e gravatas – aliás, só usou o adereço uma vez na vida e foi emprestado para tirar uma foto para o bilhete de identidade.
O nacionalismo linguístico é algo que não compreende e, aos 63 anos, confessa continuar atormentado pelos mesmos temas que lhe tiravam o sono aos 20, como as alterações climáticas e os conflitos armados. Da militância nas ruas pelo clima à política, passando pelo processo de escrita de um novo livro, foi assim a conversa com José Eduardo Agualusa
Mestre dos Batuques passa-se no Planalto Central, mais precisamente no Bailundo. Nessa zona de Angola o colonialismo não foi tão marcante?
Ali a realidade foi muito diferente de Luanda, onde se fala de uma ocupação de 500 anos. Ali foram sete décadas, é muito diferente. O nacionalismo angolano no Planalto Central foi muito marcado pelas missões protestantes. Essas missões incentivaram a reação contra o domínio colonial português. Os portugueses sabiam disso, viviam numa situação sempre de incomodidade, vamos dizer assim. Essas missões — ou parte delas — eram americanas e o governo português tinha dificuldade em lidar com elas. As autoridades portuguesas sabiam que os missionários estavam envolvidos na génese do movimento nacionalista. Por outro lado, Portugal tinha de manter boas relações com os EUA. A duplicidade foi sempre uma constante até à independência.
É uma história de amor, mas também de autodescoberta e de pertença. Esta pertença é algo pessoal neste livro, uma vez que o José Eduardo Agualusa nasceu no Planalto Central. Isso teve algum peso?
Tem sobretudo a ver com um outro livro muito diferente, mas que me marcou há muitos, muitos anos. Quando era estudante de Agronomia, lembro-me de ter comprado uma edição portuguesa do Ada ou Ardor, do Vladimir Nabokov. Foi um dos primeiros que li dele, mesmo antes de ler o Lolita. No livro, ele faz uma coisa engraçadíssima que é colocar a ação num país que é a Rússia e os EUA. Formam um único país na visão de Nabokov. Porque o Nabokov tinha esse duplo pertencimento. Sentia-se ao mesmo tempo americano e era um russo-americano. O que fiz neste livro foi semelhante. Tenho este personagem [Jan Pinto] que nasceu no Bailundo, filho de um português e de uma mãe bóer [colonos holandeses na África do Sul], e que depois tem uma história de amor com uma menina de Luanda. O que fiz foi algo semelhante ao inventar a possibilidade de um país no qual o Planalto Central acaba por se unificar com Angola, mas já após a independência.
Apesar de se passar durante o colonialismo, a história é contada por uma narradora atual. Como é que encontrou esta voz?
Normalmente tenho uma ideia muito vaga quando começo a escrever um romance. Às vezes é uma personagem, outras vezes é uma frase, mas sempre muito vago. Depois, as personagens é que me vão ajudando a construir o romance. Neste caso foi diferente. Eu tinha terminado o meu livro anterior, que é uma biografia do Abel Chivukuvuku, um homem do Planalto Central de Angola cuja família está diretamente ligada às famílias reais daquela região, em particular do Bailundo. Deu-me muito trabalho a escrever e, portanto, vivi muitos meses mergulhado na história do Bailundo. Tinha lido muitos livros, inclusive de visitantes portugueses e ingleses. Um dia, estava a fazer uma viagem entre Lisboa e Braga e a história caiu-me assim, quase completa, no colo. Talvez não tivesse ainda a narradora, mas em poucos minutos tinha a história. Mas é sempre difícil encontrar a voz que vai contar a história.
Neste caso, quem é a voz que conta a história?
É uma mulher que está no presente e que, de alguma forma, herda uma certa sabedoria ancestral. O livro também é um pouco sobre isso, porque aquilo a que chamamos magia são muitas vezes conhecimentos que não dominamos.
Mas não podemos falar muito sobre isso por causa dos spoilers.
Sim, aquilo que era visto como magia, hoje é visto como ciência. E mais não podemos dizer.
O Planalto Central de Angola foi o berço para a formação da UNITA [União Nacional para a Independência Total de Angola]. Isso faz com que a zona ainda hoje se destaque em termos de ideais ou reivindicações?
Em termos culturais, sem qualquer dúvida. A formação cultural do Planalto Central é muito diferente daquilo que acontece em Luanda. Aliás, Angola é um país muito grande e tem realidades muito diferentes. Evidentemente, o Norte de Angola também tem uma outra realidade. O Sul tem uma outra realidade. Aquela é bem particular. Agora, até do ponto de vista político, acho que houve uma integração. Se nós pensarmos nas últimas eleições, aconteceu esta situação interessante que foi a UNITA ganhar em Luanda, que sempre foi território do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola]. Foi ali que o MPLA nasceu, se formou, etc. E o MPLA ganhou no Bailundo. De um ponto de vista político, podemos falar de uma integração surpreendente. De um ponto de vista cultural, é mais complicado.
Complicado como?
No Huambo, até hoje a ligação à língua portuguesa é diferente. A maior parte das pessoas fala umbundo como língua materna. Quando os portugueses começaram a estabelecer-se comercialmente lá, tinham de ter a autorização do rei do Bailundo e muitas vezes já encontraram angolanos que falavam inglês muito bem, que sabiam escrever. Muitas vezes os portugueses não sabiam ler nem escrever, eram analfabetos e chegavam ao Huambo e contratavam angolanos letrados como secretários. Estes tinham sido precisamente educados nas missões protestantes. Isso, do ponto de vista espiritual, também altera tudo. Estes angolanos têm uma formação mais calvinista, ao contrário dos angolanos de Luanda, que são essencialmente católicos. A mentalidade dos angolanos do Planalto Central é mais próxima daquela que encontramos em países anglófonos, como a África do Sul, por exemplo.
[...]
Falando no Brasil, é um país que conhece bem, onde também viveu. Como é que todos estes mercados literários de língua portuguesa e os respetivos autores se relacionam atualmente?
Acho que a ligação é maior hoje entre todos os países de língua portuguesa. Por um lado, as novas tecnologias facilitam a circulação de ideias. Por outro lado, há muito mais circulação de pessoas. Acho que os autores são bastante próximos. Em outubro vou a Portugal com o Mia Couto, que vai apresentar o meu livro, e depois seguimos juntos para o Brasil. Às vezes ouço falar da questão das variedades da língua portuguesa e é sempre um choque ouvir portugueses que se exaltam contra o brasileiro, contra a variedade do português no Brasil. É um absurdo completo porque o português que se fala no Brasil é, em larga medida, aquele português que se falava em Portugal há 200, 300 ou 400 anos. Aquilo que, muitas vezes, surge aos ouvidos de um português como uma coisa exótica, na realidade era o português antigo do tempo de Camões. Para ler Os Lusíadas, a métrica só funciona se lermos com o sotaque brasileiro, não funciona com o sotaque português atual. Enfim, o nacionalismo linguístico sobressalta-me. Isso e a ignorância das pessoas.
Haver tantas variantes da língua portuguesa deveria ser um enriquecimento?
Se você gosta da língua portuguesa, tem que amar a língua portuguesa de Angola, a que se fala em Moçambique e aquelas muitas variedades que se falam no Brasil. Se me perguntarem: «Você escreve em que variedade de português?» Para mim, escrevo no português global. Todas as variedades do português me interessam, são minhas. Não devia haver discussão sequer. Claro que esse nacionalismo linguístico também existe no Brasil, existe em todos os países. A estupidez é muito popular. Hoje, as redes sociais e as novas tecnologias permitiram uma democratização da estupidez. Muitos dos problemas que temos têm a ver com isso. Sempre houve pessoas estúpidas, mas não tinham tanta facilidade de comunicar. Outra coisa é a quantidade de notícias absurdas que se propagam e que podiam ser desmontadas em cinco minutos. Antigamente, quando não havia Internet, se eu queria pesquisar alguma coisa, ia tardes inteiras para a biblioteca. Agora basta fazer uma pesquisa rápida para tirar uma dúvida. Porque é que as pessoas não fazem isso?
Por preguiça? Porque tudo lhes é oferecido?
Sim, de facto, é oferecido, está ali à frente e as pessoas aceitam, mas é realmente assustador. Isso explica depois a existência de fenómenos políticos como o Trump. Porque não há este trabalho, não há inteligência para procurar. Os jovens, por exemplo, não deixaram de ler livros, mas deixaram de ler jornais. Isso é preocupante.
Também veem cada vez menos a televisão linear, telejornais, canais noticiosos.
Informam-se através das redes sociais, imagino eu, o que não é muito bom. Não estão treinados para ler artigos de fundo, ler ensaios. Acho que há cada vez menos esse hábito. [...]
Cf. Nacionalismo e língua portuguesa + Políticas de língua, multilinguismos e migrações: para uma reflexão policêntrica sobre os valores do português no espaço europeu
Excertos de uma entrevista ao jornalista e escritor José Eduardo Agualusa publicada no jornal digital Observador em 6 de outubro de 2024.