«A perda de uma língua é, por isso, a perda de uma mundividência.»
Quem visitar a Província do Namibe, no Sudoeste de Angola, não pode deixar de ficar impressionado com a grandiosidade do seu deserto. Aqui, como em outras zonas áridas da Terra, a paisagem parece à primeira vista imutável, silenciosa, seca e sem vida. Mas esta é apenas uma das muitas partidas que o deserto prega aos viajantes. Com o tempo, o cenário começa a revelar-se: as plantas que se agarram ao solo para que o vento não as leve; os répteis que se escondem na sombra das welwitschias; as gazelas que nos olham, curiosas, a curta distância, aproveitando os veios de pasto doce que amaciam a dureza do chão; ou os rios intermitentes cujos leitos arenosos se podem alagar quase da noite para o dia – tudo provas de que, afinal, mesmo nas condições mais adversas, a vida acaba por singrar.
E quando pensávamos que os seres humanos teriam todas as razões para se afastar da secura desta terra, apercebemo-nos de que o Namibe foi ao longo dos séculos um ponto de encontro de povos com origens muito diversas que souberam contornar as dificuldades do deserto e dar um exemplo admirável de inteligência e adaptação. Kuvale, kwissi, kwepe, himba, kwanbundo – são apenas alguns dos nomes que reflectem a grande variedade das comunidades humanas que povoaram a região.
Hoje, muitas destas comunidades adoptaram as línguas e a cultura dos povos hereros de que descendem os kuvales e os himbas, cujo modo de vida pastoril se ajusta na perfeição às condições adversas do deserto. No entanto, há várias razões para pensar que ainda há pouco tempo as línguas e as culturas locais teriam sido muito mais variadas.
O kwadi, por exemplo, era há menos de quatro gerações a língua dominante dos kwepes, um povo de pastores com pouco gado que se dispersaram ao longo do rio Curoca.
Um encontro com D. Clementina
Quando parti para o Sudoeste de Angola em 2013, sabia que o kwadi era diferente de todas as línguas faladas na região. No século XIX, os exploradores Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens tinham-se referido a esta língua misteriosa no início da narração da sua viagem de Angola à Contracosta, onde, numa breve nota de rodapé, registaram exemplos de como em kwadi se contava até dez.
Muito mais tarde, nos anos de 1950, o professor António de Almeida tinha gravado entrevistas com pessoas que falavam a língua e tinha-a estudado em colaboração com o linguista Ernst Westphal. Mas eu também sabia que o kwadi era uma língua moribunda.
O povoado onde António de Almeida fez as gravações só tinha 50 habitantes e apenas cinco idosos ainda se lembravam do idioma dos seus antepassados. Os outros já só falavam kuvale. Todas as fontes disponíveis davam o kwadi como morto e o povo kwepe, que o tinha falado, era visto como uma comunidade aculturada em vias de extinção.
E, no entanto, a D. Clementina estava ali sentada à minha frente. Entrecortada pelos ventos do deserto do Oluheke, a sua voz devolvia-me em kwadi as respostas às perguntas que eu lhe fazia em português.
Eu já tinha ouvido falar de Clementina e Felismina, duas senhoras da comunidade kwepe que ainda se lembrariam do kwadi; mas as referências eram sempre vagas. Samuel e Teresa Aço, fundadores do Centro de Estudos do Deserto, que me acolheram na povoação de Curoca, mostraram-me que os kwepes, apesar de agora falarem a língua dos pastores kuvales que dominam culturalmente a região, estavam longe de se terem extinguido.
Chefiados por António Mpeapé, mantinham um modo de vida pastoril modesto e seminómada. No entanto, sempre que perguntava aos kwepes pela D. Clementina e pela D. Felismina, ou me diziam que estavam muito longe, ou que não quereriam falar com ninguém, ou ainda que a sua idade avançada já teria apagado das suas memórias as recordações da antiga língua.
Mas naquele dia de Março de 2013, depois de deambular pela região do Olueke, a 70 quilómetros da costa atlântica, procurando localizar pequenos grupos de kwepes e de outros povos dispersos pela região, na companhia da minha então aluna Sandra Oliveira e de Teresa Aço, alguém me disse que uma das senhoras, a D. Clementina, se encontrava a duas horas de distância, num posto de abastecimento da área do Umbu.
Agora, após uma viagem de carro dificultada pela areia e apressada pelo medo de perder oportunidade de a contactar, encontrei Clementina sentada tranquilamente debaixo de uma acácia e, por pura sorte, tinha à mão um pequeno gravador de bolso que o Samuel Aço me tinha emprestado.
Junto de duas amigas, ela encarava-me com os seus olhos pequenos na face enrugada pelas asperezas do deserto. O lenço que trazia na cabeça, os panos coloridos à volta da cintura, o tronco nu com os seios comprimidos por tiras de couro, pouco a distinguiam das mulheres kuvales – um testemunho visual da hegemonia que esta cultura pastoril exerce na região.
Apesar de tudo, a primeira coisa que Clementina fez foi proclamar a sua identidade cultural na antiga língua do seu povo: «Eu sou puro kwepe; nem sou kwisi nem sou kuvale; na minha língua dizemos khode para designar «pessoa»; não dizemos mutu [como os kuvales].»
As línguas contam a história de quem as fala
As línguas servem para comunicar, mas não comunicam sempre as mesmas coisas. É pelas línguas que aprendemos as normas e os costumes dos grupos a que pertencemos, e esses costumes variam muito de população para população. A forma como nos devemos dirigir aos mais velhos, aqueles que consideramos nossos parentes, a maneira como designamos as cores ou os pontos de referência que usamos para nos orientarmos no espaço não são os mesmos em todas as comunidades e isso reflecte-se na sua maneira de falar.
A perda de uma língua é, por isso, a perda de uma mundividência. Mas as línguas também nos contam a história das comunidades que as falam e eu queria saber as origens do povo que falava kwadi e quais eram as suas relações com outras populações da África Austral.
Para reconstituir a história de uma população, é preciso comparar as suas características com as de outros grupos. Línguas, artefactos, indumentárias, costumes e genes, tudo nos ajuda a retraçar o trajecto das comunidades no tempo e no espaço. Apesar de a história ser só uma, cada cadeia de investigação interdisciplinar nos chama a atenção para aspectos diferentes da mesma realidade.
Os genes e as línguas são ambos transmitidos de geração em geração e têm uma relação especialmente íntima, embora nem sempre concordante. Assim como as línguas com origens comuns divergem ao longo do tempo quando os grupos que as falam se separam, também a composição genética das populações se vai diferenciando. Por outro lado, quando populações afastadas se encontram, as suas línguas, ainda que muito diferentes, acabam por se influenciar mutuamente. Na maior parte das vezes há troca de palavras. Noutros casos, há mesmo a formação de crioulos – novas línguas que reflectem intensas permutas culturais que, não raro, são acompanhadas por níveis elevados de miscigenação genética, como aconteceu, por exemplo, em Cabo Verde.
A primeira entrevista com Clementina foi uma pequena porta que se abriu sobre a história dos kwepes. Como não sou linguista nem sei falar kwadi, voltei ao deserto do Namibe no ano seguinte acompanhado por Anne-Maria Fehn, uma investigadora de línguas nativas da África Austral que trabalhava no Instituto Max-Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig (Alemanha) e agora dirige o grupo de investigação interdisciplinar do Cibio ao qual pertenço.
Nessa altura, a D. Clementina já estava à nossa espera e pudemos reuni-la com a D. Felismina na localidade de Kamilunga, próxima da povoação de Curoca, junto à costa. Quando eram crianças, disseram-nos, a língua do seu povo já estava em vias de extinção, mas elas eram amigas e costumavam ajudar uma velha senhora, a D. Kaussa, que ensinava as crianças a falar kwadi.
Não sabemos quantas crianças D. Kaussa ensinou, mas certamente que Clementina e Felismina se encontravam entre as alunas mais aplicadas; continuaram a praticar ao longo dos anos e usaram muitas vezes o kwadi como uma língua privada que lhes permitia coscuvilhar sem que ninguém percebesse o que estavam a dizer.
Na longa entrevista que fizemos às duas senhoras, pedimos-lhes que construíssem breves frases e nos traduzissem uma lista de 600 palavras com significados frequentemente usados em todas as línguas – como casa, fogo ou cabeça, braço e outras partes do corpo – que nos ajudassem a comparar o kwadi com outras línguas africanas.
O kwadi tem uma família
A documentação linguística que Felismina e Clementina nos deixaram recolher, juntamente com as gravações de António de Almeida e Ernst Westphal, mostram-nos que o kwadi não é uma língua totalmente isolada.
As línguas mais parecidas com o kwadi, porém, encontram-se a milhares de quilómetros de distância e dispersam-se pela faixa de Caprivi, na Namíbia, pelo deserto do Calaári e pelo delta do rio Okavango, no Botswana. No seu extremo oriental atingem o Zimbabwe. No extremo sul são faladas pelos descendentes dos pastores do Cabo, com quem Bartolomeu Dias e Vasco da Gama certamente terão contactado.
Apesar desta enorme dispersão, é possível agrupar estas línguas numa única família, o khoe-kwadi, cujos idiomas têm muitas palavras e elementos gramaticais com uma origem comum. Entre elas, a palavra usada para designar carneiro (guu) é especialmente importante porque foi adoptada, com mais ou menos modificações, por quase todas as línguas que ocupam as regiões onde se fala khoe-kwadi, mesmo que não pertençam a esta família.
Tal como o uso da palavra link em português nos indica que as inovações informáticas têm origem anglo-saxónica, a adoptação do termo guu sugere-nos que os carneiros foram introduzidos na África Austral por antepassados dos khoe-kwadi
De onde vieram esses antepassados? Os achados arqueológicos mostram-nos que os primeiros animais domésticos a aparecer na África Austral foram os carneiros, há cerca de 2000 anos. As pinturas rupestres dispersas pela região mostram-nos carneiros de cauda gorda, que foram introduzidos nos Grandes Lagos da África Oriental a partir do Médio Oriente.
É provável, assim, que os primeiros khoe-kwadis tenham sido pastores de carneiros que chegaram ao Sul do continente vindos da África Oriental e se dispersaram pelos quatro cantos da África Austral. Como o kwadi é mais diferenciado, os primeiros a separar-se terão sido os antepassados dos kwepes, que ocuparam a faixa litoral do Namibe.
Genes, línguas e migrações
Até agora apenas se conhece uma língua da África Oriental, o sandawe, que é vagamente semelhante às línguas da família khoe-kwadi. Mas se as provas linguísticas escasseiam, os resultados da genética são inequívocos quanto à ligação dos khoe-kwadi à África Oriental. Na África Austral, os grupos que falam línguas desta família têm todos uma mutação genética de tolerância à lactose que permite aos seus portadores consumir grandes quantidades de leite. Por isso, a tolerância à lactose foi favorecida pela selecção natural nas populações de pastores que dependem do leite para sobreviver.
Embora a tolerância à lactose possa resultar de várias mutações genéticas, a mutação dos povos khoe-kwadis é igual à das populações pastoris da região dos Grandes Lagos, sendo muito provável que tenha sido aí que se originou.
Além disso, é possível detectar porções dos genomas dos khoe-kwadis que são semelhantes ao material genético extraído de ossadas com mais de 3000 anos encontradas na estação arqueológica de Luxmanda, na Tanzânia, cujos ocupantes se dedicavam à pastorícia.
Apesar da partilha de material genético da África Oriental, as populações khoe-kwadis não são homogéneas. Quando chegaram à África Austral há 2000 anos, a região já era ocupada há muito tempo por povos de caçadores-recolectores. Embora sejam colectivamente conhecidos por coissãs (khoisan), estes povos são geneticamente muito diferenciados uns dos outros e das restantes populações africanas. Quando chegaram ao Sul do continente, os antepassados dos khoe-kwadis misturaram-se com as várias populações nativas de caçadores-recolectores e isso contribuiu para a sua diferenciação.
Mais tarde, numa outra vaga migratória, chegaram os agro-pastores com línguas da família banto, cujas origens se situam na fronteira entre a Nigéria e os Camarões. Os kuvales (mucubais), que tanto influenciaram os kwepes, são um povo banto que se especializou na pastorícia.
Os estudos genéticos que realizei com Sandra Oliveira e Mark Stoneking (também ele do Instituto Max-Planck de Leipzig) mostram que, no meio desta encruzilhada, os genomas dos khoe-kwadis formam mosaicos composto pelos vestígios das várias migrações que contribuíram para que África Austral seja hoje uma das regiões mais diversas e promissoras do mundo.
Nesta investigação, os kwepes reservaram-nos uma grande surpresa: descobrimos que há nos seus genomas fragmentos de uma população até agora desconhecida com quem os seus antepassados se terão misturado quando chegaram às praias do deserto do Namibe. São os vestígios dessa população enigmática que agora procuro.
Quando fui para o Sudoeste de Angola, confesso, esperava encontrar os últimos representantes de um grupo étnico puro que preservasse um segredo que a miscigenação nos outros povos tivesse apagado. Afinal, o segredo foi preservado pela mistura. Parafraseando o escritor angolano Pepetela, num mundo a preto e branco, de sim ou não, os puros kwepes da D. Clementina são, como todos nós, talvez. Talvez significa sim quando se espera um não, e quer dizer não quando se espera um sim.
N. E. – No topo, a ilustração que acompanha este trabalho no jornal Público. A grafia dos etnónimos e dos nomes das línguas (glossónimos) está conforme o original.