1. A entrada neste novo ano leva-nos a desejar a todos os nossos consulentes um excelente 2020, com felicidade, sucesso e bom português.Cada começo de ano é motivo para elaborar projetos a concretizar no decurso dos seus 365 dias. Ora, este ano temos mais um dia para realizar todos os nossos objetivos porque 2020 é um ano bissexto, o que significa que tem 366 dias. Esta situação tem lugar de quatro em quatro anos, de modo a manter o calendário anual ajustado ao movimento de translação da Terra, que, na realidade, tem a duração de 365 dias, 5 horas e 48 minutos. Logo, a cada quatro anos, introduz-se mais um dia no calendário para fazer o acerto (cf. aqui). Popularmente, julga-se que o termo bissexto, usado para designar este ano, está relacionado com os dois 6 de 366 (ou seja, bissexto significaria "dois 6"), mas a palavra tem a sua origem no termo latino bisextus, palavra complexa formada por "bi-" ("duas vezes") e "sextus", em referência ao sexto dia antes das calendas de Março, de acordo com o calendário romano – ou seja, os romanos, de quatro em quatro anos, repetiam este dia sexto, o que atualmente corresponderia a colocar um dia extra entre 24 e 25 de fevereiro (cf. resposta «Ano bissexto»). O início do ano implica também o recomeço da contagem do tempo, feita em horas, dias, semanas e meses. O primeiro intervalo de tempo é um mês de 31 dias que recebe o nome de janeiro, termo herdado do latim e que está relacionado com o deus Jano, o deus da mudança, que tem como característica marcante o facto de ter duas faces, uma que olha para trás, para o passado, e outra para a frente, para o futuro (a propósito, recordamos o artigo da professora Maria Regina Rocha sobre o calendário e os nomes dos meses).
2. Também motivado pela entrada do novo ano, o tradutor e professor universitário Marco Neves pega exatamente na palavra ano para convidar os seus leitores a uma viagem pelas formas de dizer e escrever a palavra em algumas línguas latinas, de Portugal à Transnístria (vídeo disponível no seu blogue Certas Palavras).
3. Com o início do novo ano, o Ciberdúvidas regressa às atualizações regulares do Consultório, tratando as mais diversificadas questões: da norma às evolução linguística, passando pela ortografia, sintaxe, semântica, pragmática, entre outros domínios específicos da língua portuguesa. Com base numa primeira questão, verificamos que o contacto entre línguas leva a que, por vezes, ocorram empréstimos de palavras e até decalque de expressões. Será este o caso de «ficar a dever uma», expressão pouco normativa em português que terá sido decalcada do inglês. Também pouco aceitável do ponto de vista formal, no âmbito do português europeu, será o verbo vidrar com o significado de «ficar encantado». É também no âmbito da norma que se enquadra a questão dos tempos e modos verbais a utilizar numa ata, embora se venha a verificar que algumas opções são condicionadas pelas intenções dos falantes. Ainda uma resposta sobre as possibilidades sintáticas do verbo indemnizar e sobre as razões da grafia distinta no português europeu e no português do Brasil. Por fim, a questão do aportuguesamento do nome latino Ammaia, designação dada a uma antiga cidade da Lusitânia romana, localizada em Portugal, em São Salvador de Aramenha (concelho de Marvão, Portalegre).
4. Saudade é a palavra que caracteriza por excelência a língua portuguesa. O mito da impossibilidade de tradução desta palavra cresceu e transformou-a numa realidade opaca e carregada de sentimentos que, aparentemente, só quem é falante de língua portuguesa estará habilitado a experimentar. Retomando a simbologia da palavra e a problemática da sua origem, a revista National Geographic apresenta um apontamento que destaca a importância que a saudade foi conquistando. A este texto associamos outro do escritor português Onésimo Teotónio de Almeida (datado de 2016), que reflete sobre a essência da supostamente intraduzível palavra. A palavra saudade tem também uma história associada à entrada em vigor em Portugal da norma ortográfica de 1945. Vigorando até então a reforma de 1911, a palavra grafava-se com um trema (saüdade) e a mudança não deixou indiferentes os falantes que tinham sido alfabetizados nessa norma. Definia a Base XXVII da norma ortográfica de 45: «O trema, sinal de diérese, é inteiramente suprimido em palavras portuguesas ou aportuguesadas. Nem sequer se emprega na poesia, mesmo que haja separação de duas vogais que normalmente formam ditongo: saudade, e não saüdade, ainda que tetrassílabo; saudar, e não saüdar, ainda que trissílabo». E, ontem como hoje, sempre que há mudanças na língua, as reações não faltam. Uma delas está bem ilustrada pelo poema satírico de autoria do poeta e escritor português João Silva Tavares (1893-1964), que, de forma bem humorada, defendeu que a supressão do trema constituía afinal um problema a menos numa realidade tão complexa como é a da saudade.
No português do Brasil, o trema caiu com a entrada em vigor no país do Acordo Ortográfico de 1990, conforme o estipulado na sua Base XIV.
Cf. «E um verso em branco à espera de futuro»
5. A Galiza vai poder ter acesso aos canais de rádio e televisão portugueses, fruto do acordo entre o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) e o BNG (Bloco Nacionalista Galego), através do qual se facilitará a investidura de Pedro Sánchez com o voto de Néstor Rego, deputado nacionalista galego (notícia aqui). Este acordo serve os interesses da Galiza, que pretende promover a língua galega através de inúmeras estratégias, entre as quais a aproximação ao português, língua com a qual partilha as suas raízes.
6. Durante o período de interrupção das atividades do Consultório, o Ciberdúvidas manteve a divulgação de textos relacionados com a língua portuguesa, que aqui recordamos num breve apanhado: a nossa colaboradora permanente Carla Marques, olhando alguns usos recorrentes na comunicação social, alertou para os casos de utilização excessiva e, por vezes, violenta do verbo arrastar; numa perspetiva mais histórica, destacámos a crónica do historiador e político Rui Tavares sobre o livro Assim Nasceu uma Língua, do linguista Fernando Venâncio, centrando-se no tema da origem problemática e longínqua da língua portuguesa; ainda numa perspetiva histórica, divulgámos um apontamento do tradutor Vítor Lindegaard que trata as origens das palavras charro, insumo e sótão; em torno das palavras relacionadas com a época natalícia, um texto do poeta e cronista Pedro Mexia explora o período e o significado do Advento; por fim, um texto do professor Santana Castilho, que reflete sobre a situação do ensino do português no estrangeiro.
7. A palavra do ano 2019 é violência doméstica. Esta iniciativa da Porto Editora, que divulgou hoje (6 de janeiro) a palavra eleita, destaca a riqueza e a diversidade lexical da língua portuguesa e tem permitido sublinhar assuntos centrais a que a população e a comunicação social atribuem maior importância ao longo do ano. Num ano marcado pelas notícias relacionadas com este flagelo, a escolha de violência doméstica como palavra do ano é também mais uma forma de consciencializar para a importância de prevenir e impedir a existência de quaisquer tipos de maus-tratos em ambiente familiar. «A escolha é justificada pela Porto Editora “em consequência dos inúmeros casos que foram sendo conhecidos ao longo do ano e que, infelizmente, resultaram em vítimas mortais — de acordo com notícias recentes, foram 35 mulheres, homens e crianças assassinadas em Portugal no contexto de violência doméstica só no ano passado”», afirma-se na notícia do jornal Público.