A noite era de verão, mas não foi para assistir a uma peça de Shakespeare a razão para que, na passada sexta-feira, dia 4 de julho, o Coliseu dos Recreios tenha ficado quase lotado. Também não foi para assistir a um espetáculo de declamação de poesia ou stand-up comedy (ou «humor a solo») o motivo para que tantas pessoas tenham, numa noite quente em Lisboa, decidido ir a uma das salas de espetáculo mais emblemáticas do país. Foi antes uma mistura das duas coisas, uma espécie de «comédia poética», apresentada pelo famoso ator e comediante brasileiro Gregório Duvivier, a grande causa de tal ajuntamento.
Tudo começa com Camões, não fosse este o príncipe predileto dos amantes da língua portuguesa, e o seu verso inaugural d’Os Lusíadas. Depois disso, segue-se uma série de considerações sobre a língua, as palavras e, claro, o português, o grande elo de união deste retângulo à beira-mar plantado e o colossal país da América Latina, no outro lado do oceano Atlântico. No fundo, o espetáculo O Céu da Língua é uma ode às palavras que usamos todos os dias e uma declaração de amor à língua portuguesa.
Abordam-se questões como: se, no princípio, Deus criou os céus e a terra, a quem terá dirigido as sábias palavras da criação? Sem palavras, Deus não existia, até porque, como explica o ator, no início está o verbo e este pode ser entendido por aqueles que se consideram religiosos como sendo uma prova da existência de Deus. Mas Duvivier diz que não acredita em Deus, a sua fé está antes nas palavras, que, tal como declama, fazem com que «cada um de nós [tenha] o poder divino de lançar mundos no mundo só porque tem a palavra».
No entanto, não são só considerações filosóficas que constroem o espetáculo, pois, como indicado no início deste texto, há também espaço para o riso. Para a pergunta de onde terão vindo as palavras, Duvivier tenta adivinhar uma resposta fazendo a sala rir em coro, pois defende que estas não nascem do nada, sendo antes roubadas a outra língua. E para exemplificar esta sua teoria, vai buscar o exemplo da palavra fetiche, roubada pelos falantes de português aos falantes do francês para designar uma fantasia sexual. Contudo, o que os falantes de português já não se lembram é que o fétiche do francês terá tido origem na palavra portuguesa feitiço. Isto leva o ator a concluir que «toda a língua é uma outra falada errado», sendo que o italiano é um latim que errou pelo volume, o francês é um latim que nasce da dor, o espanhol terá nascido de um problema de dicção e o português, estrela principal, vem da preguiça de pronunciar todas as consoantes.
E por falar em português, essa língua que divide dois mundos, este espetáculo encontra também espaço para brincar com a sua variação lexical. Um dos casos que é apresentado ao espectador é o da palavra vómito. No Rio de Janeiro, a maneira informal de se referir ao vómito será, de acordo com Duvivier, «chamar o Raul», em São Paulo é «chamar o Hugo», já em Portugal, para grande risada dos espectadores, foi surpreendente para o ator descobrir que é «chamar o Gregório».
Resumindo, o Céu da Língua é um monólogo, que, ao mesmo tempo que faz rir, faz também pensar sobre a língua que todos os dias usamos para expressar o nosso entendimento do mundo. É uma bela construção sobre como terá nascido e evoluído a língua que os leitores do Ciberdúvidas tão bem conhecem e apreciam.