Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Género e temporalidade
A arbitrariedade na atribuição de género

Há palavras em português que já tiveram um género gramatical diferente? No seu apontamento desta semana, a professora Carla Marques apresenta a resposta para esta questão.

(apresentado no programa Páginas de Português, da Antena 2)

Cujo com preposição
«para cujo…»

Pode usar-se a preposição para com o relativo cujo, como em «Este é o livro, para cuja nova edição contribuí»? A resposta é dada pela professora Carla Marques no apontamento desta semana do programa Páginas de Português, da Antena 2

Pergunta:

Fiquei com dúvida na seguinte estrofe constante de um soneto de Camões:

«Eu cantarei de amor tão docemente,
Por huns termos em si tão concertados,
Que dous mil accidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.»

Minha dúvida é: como funciona a concordância do verbo fazer na frase? Por que Camões utilizou o verbo no singular?

Obrigado!

Resposta:

Na estrofe em questão, o verbo fazer encontra-se conjugado na 1.ª pessoa do singular porque o sujeito é o “eu” poético.

A construção está marcada por um hipérbato, ou seja, do ponto de vista sintático, existe uma alteração da ordem dos constituintes, os quais não surgem na sua ordem natural. Esta corresponde ao que se apresenta em (1):

(1) «que [eu] faça sentir ao peito que não sente dous mil accidentes namorados»

Disponha sempre!

Pergunta:

Hoje acordei a questionar-me sobre a expressão «até prova em contrário».

Porquê «em contrário» e não algo como «até prova contrária»?

Obrigado.

Resposta:

A locução «em contrário» é uma estrutura fixa que se combina com diferentes nomes.

«Em contrário» significa «contra; contradizente» (Dicionário Priberam) e surge em construções como por exemplo:

(1) «ordem em contrário»

(2) «nada em contrário»

(3) «indicação em contrário»

(4) «prova em contrário»

Trata-se, portanto, de um uso, legítimo e bastante comum.

Todavia, é possível também registar o uso do adjetivo contrário em situações em que se usa a locução, como se observa pelos exemplos seguintes:

(5) «ordem contrária»

(6) «indicação contrária»

(7) «prova contrária»

Assim, do ponto de vista linguístico, poderemos afirmar que as expressões «prova em contrário» e «prova contrária» são equivalentes, estando à disposição dos falantes. Acrescente-se que esta última possibilidade é frequentemente usada em textos do foro jurídico por vezes em concorrência com o termo contraprova.

Disponha sempre!

Pergunta:

No artigo "Modificadores de frase: grupos sintáticos e orações", não estou a perceber a diferença dos dois últimos exemplos, os quais passo a transcrever:

«(20) «Talvez os compradores estivessem certos.» – modificador de frase

(21) «Nunca tanta pressa vi.» – modificador de grupo verbal»

Talvez não seria também, tal como nunca, um modificador de grupo verbal, dado que também não é demarcado por uma vírgula?

Muito obrigado!

Resposta:

Distinguimos modificador do grupo verbal do modificador de frase pelo comportamento dos constituintes na frase.

Assim, o modificador do grupo verbal integra a função sintática de predicado, pelo que se relaciona diretamente com o verbo do sintagma verbal em que se inclui. Note-se que o predicado é uma função sintática que se define ao nível da frase e que pode incluir no seu interior o verbo e todos os seus complementos e modificadores.

O modificador do grupo verbal tem a característica específica de poder ser interrogado e negado. Vejamos o que acontece na frase transcrita em (1):

(1) «Nunca tanta pressa vi.» / «Todos os dias vi pressa.»

(1a) «Foi nunca que viste tanta pressa?» «Foi todos os dias que vi pressa?»

(1b) «Vi tanta pressa não nunca mas sempre.» / «Vi pressa não todos os dias mas à segunda-feira.»

Refira-se que, neste caso particular, os testes resultam em frases algo estranhas, o que se deve ao valor negativo do advérbio nunca. No entanto, o constituinte nunca admite os testes, o que se conclui pela frase de controlo em que se colocou no lugar de nunca o constituinte «todos os dias», com o qual os testes produzem frases mais naturais.

O modificador de frase, por seu turno, incide sobre a frase na sua totalidade e não apenas sobre o predicado. Distingue-se do modificador do grupo verbal por não admitir ser negado nem interrogado. Veja-se a aplicação do teste à frase transcrita em (2):

(2) «Talvez os compradores estivessem certos.»

(2a) «*Foi talvez que os compradores estivessem certos?»

(2b) «*Não talvez mas certamente os compradores estivessem certos.»

Como se pode observar, os testes não se aplicam à ...