Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente ao "hábito" de se responder a partir das perguntas dos enunciados, noto uma tendência que se traduz na seguinte frase:

«A importância dos sonhos É QUE/É PORQUE a personagem pressente algo ruim.»

Perguntava-vos, como tal, se é aceitável uma construção desse género.

Obrigado.

Resposta:

Ambas as possibilidades estão corretas. O seu uso poderá apenas ser discutido num plano estilístico de maior ou menor elegância linguística.

As estruturas «é porque» e «é que» constituem estratégias de marcação de tópico, ou seja, trata-se de uma estrutura de realce, que, neste caso, é usada porque os alunos retomam o constituinte da pergunta sobre o qual incide a interrogação:

(1) «Qual é a importância dos sonhos?»

       «A importância dos sonhos é que…»

(2) «Porque são os sonhos importantes?»

         Os sonhos são importantes porque…»

Estas ocorrências em contexto escolar motivam uma abordagem que propicie a diversificação de estruturas frásicas para construir uma resposta a uma questão de interpretação.

Disponha sempre!

Pergunta:

Tenho uma questão quanto à qual a gramática tradicional é um tanto quanto esquiva, então gostaria de seus pareceres.

Se trata de campo semântico de adjetivos em sintagmas nominais com mais de um substantivo.

Considerando-se que a GT [gramática tradicional] diz que um único adjetivo caracteriza mais de um substantivo (pelo menos enquanto o sentido do adjetivo os cobrir) e que isso ocorre conforme a disposição de termos no sintagma — inclusive em todos os casos de concordância atrativa — (o que é minha maior dúvida se de fato o é), me interesso em saber como contornar interpretações equívocas nestes casos, mormente casos em que a concordância atrativa é obrigatória, por ex., quando adjetivo(s) anteposto(s) (funcionando de adjunto adnominal) aos nomes:

«Comprei manuais e gramáticas velhos/velhas.»

(penso que caracterize ambos independentemente da ausência de determinantes e da concordância estabelecida, tanto é que se objetivasse a caracterização de somente um nome contornaria assim:

«Comprei manuais velhos e gramáticas.» / «Comprei gramáticas velhas e manuais.»

Nestes casos, a concordância se faz obrigatoriamente com o mais próximo, pois logicamente só há o mais próximo para concordar. Por conseguinte, quanto a isso também gostaria de saber que acham.)

«Comprei velhos manuais e gramáticas.»

(nota-se que o sentido do enunciado, provocado pelo deslocamento do adjetivo, mudou.

Aqui começa a complicar em meu entender, pois o adjetivo pode, conforme sua carga semântica, caracterizar ambos. E fico em dúvida se efetivamente ocorre, a ausência de determinantes teria alguma implicação diferente na interpretação? Suponho que não...

«Comprei os manuais e as velhas gramáticas.»

(Por mais que a concordância seja atrativa, não por intuição possibilidade de caracterização semântica de ambos.)

Para não ir à exaustão com exemplos, para com casos de adjuntos adnominais, paro por aqui.

...

Resposta:

A presença do adjetivo associada a estruturas nominais coordenadas constitui, com frequência, uma situação geradora de ambiguidade. Tem esta natureza o exemplo de Bechara1, recuperado em (1), que desencadeia nos falantes hesitação entre a interpretação na qual o adjetivo só modifica um nome ou modifica os dois:

(1) «o amor e a amizade verdadeira»

Em termos gerais2, de acordo com o que prevê a gramática, um adjetivo, em posição pré-nominal, que modifica dois substantivos coordenados, concorda com o substantivo que está mais próximo:

(2) «As belas casas e jardins»

(3) «As velhas gramáticas e manuais»

(4) «Os velhos manuais e gramáticas»

Se a interpretação pretendida é a de que o adjetivo só modifica o primeiro nome, terá o locutor de se assegurar que a frase não se presta a interpretações ambíguas, usando estratégias como por exemplo:

(2a) «As belas casas e também os jardins»

(3a) «As velhas gramáticas e estes manuais»

O recurso à pontuação também poderá, em certas condições, ajudar a desambiguar a ação do adjetivo:

(2b) «As belas casas, os jardins»

(3b) «As velhas gramáticas, os manuais»

Quando o adjetivo surge em posição pós-nominal, existem várias possibilidades:

(i) o adjetivo concorda em género e número com o substantivo mais próximo

(...

Pergunta:

Tenho tido dificuldades para identificar a força do que se argumenta em um período composto.

Para identificar, é preciso ter em mente o contexto e também identificar os operadores argumentativos, certo?

Duas orações me causaram dúvidas:

«De certo modo, nós alugamos o livro digital, não o adquirimos.»

«Embora não tenha nascido ontem, a era digital ainda é um mundo todo novo.»

Na primeira oração, a força do que se argumenta está no segmento «não o adquirimos»?

Na segunda oração, a força do que se argumenta está no segmento «Embora não tenha nascido ontem»?

Agradeço a atenção.

Resposta:

Não temos conhecimento do quadro no qual está a desenvolver a sua análise. De qualquer forma, de um modo geral, a força do argumento está na sua capacidade de sustentar a tese que se defende. Assim, terá mais força um argumento baseado em dados observáveis do que um argumento baseado na opinião pessoal.

No âmbito da teoria de Ducrot1, teórico da análise do discurso e da argumentação, a força argumentativa encontra-se também nos conectores, que carregam um valor argumentativo intrínseco. Estes reforçam, atenuam, contrapõem ou adicionam argumentos.

Assim, na frase (1), se a orientação do texto argumentativo for a de contra-argumentação, então a força estará em «não o adquirimos». Todavia, se o objetivo for o de sustentar a tese, então, nesse caso, a força estará em «nós alugamos o livro digital»:

(1) «De certo modo, nós alugamos o livro digital, não o adquirimos.»

Em (2), a força argumentativa pode assentar no segmento «Embora não tenha nascido ontem», se a intenção for a de explorar o contraste:

(2) «Embora não tenha nascido ontem, a era digital ainda é um mundo todo novo.»

Disponha sempre!

 

1. Ducrot, Le Dire et le Dit. Éditions de Minuit, 1985.

Pergunta:

Na frase «Dona Carlota Joaquina causou muita polêmica ao vir para o Brasil», o termo «Carlota Joaquina» é núcleo do sujeito? Ou aposto especificativo?

O termo «Dona» é núcleo do sujeito ou adjunto adnominal? Qual a classe gramatical da palavra «Dona»?

Obrigado

Resposta:

Na frase em questão, o núcleo do sujeito é o constituinte «Carlota Joaquina». Neste caso, poderemos usar dois critérios para identificar o núcleo do sujeito:

i) o núcleo do sujeito é o elemento mais importante pelo que não poderá ser eliminado da frase:

    (1) «Carlota Joaquina causou muita polêmica ao vir para o Brasil.»

    (2) «?Dona causou muita polêmica ao vir para o Brasil.»

A última frase resulta estranha porque não é de «Dona» que se fala, mas de «Carlota Joaquina».

ii) o núcleo do sujeito determina a concordância:

     Veja-se como a alteração do núcleo do sujeito desencadeia alteração no termo Dona (3), mas se substituirmos Dona por outro termo o núcleo manter-se-á inalterado (4):

   (3) «Dom António Manuel causou muita polêmica ao vir para o Brasil.»

   (4) «Senhora Carlota Joaquina causou muita polêmica ao vir para o Brasil.»

Quanto à palavra  dona, ela é um nome/substantivo comum, que, na frase em questão, desempenha a função de adjunto adnominal.

Disponha sempre!

 

?assinala a estranheza da frase.

Pergunta:

Na frase «Era isso o que estava a manter o pensamento no lugar», é um erro o uso do artigo definido o antes de que? Se sim, qual é a regra que fundamenta isso?

Obrigada.

Resposta:

O uso de o antes de que não é um erro, pelo que a frase apresentada é correta.

Estamos perante uma construção relativa particular introduzida pela locução relativa «o que», que pode ser usada em situações em que retoma uma oração anterior, como em (1):

(1) «Ele queria ler aquele livro na íntegra, o que conseguiu naquele fim de semana.» (o que retoma «ler aquele livro na íntegra»)

Na frase apresentada pela consulente, a locução «o que» retoma o pronome isso, que terá a função de sujeito na frase:

(2) «Isso era o que estava a manter o (seu) pensamento no lugar.»

A oração subordinada relativa desempenha, neste caso, a função de predicativo do sujeito.

Disponha sempre!