Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma correta de escrever a seguinte frase: «alguma coisa boa há de acontecer-me» ou «alguma coisa boa há de me acontecer»?

Obrigado

Resposta:

As duas possibilidades estão corretas.

De uma forma geral, os orações que incluem verbo no infinitivo simples admitem a colocação dos pronomes átonos tanto em posição enclítica (depois da forma verbal no infinitivo) como em posição proclítica (antes da forma verbal no infinitivo)1.

As orações infinitivas introduzidas pela preposição de seguem o comportamento descrito no parágrafo anterior, como se observa pelos exemplos (1) e (2):

(1) «Tens de dar-lhe este recado.»

(2) «Tens de lhe dar este recado.»

As diferenças no uso enclítico ou proclítico estão, muitas vezes, dependentes da apreciação individual dos falantes, que preferem uma das posições.

Assim, no caso apresentado, poderemos aceitar as duas possibilidades:

(3) «Alguma coisa boa há de acontecer-me.»

(4) «Alguma coisa boa há de me acontecer.»

Pode ainda ocorrer a subida de clítico, o que se verifica na frase (5), que também é uma construção possível:

(5) «Alguma coisa boa me há de acontecer.»

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2278-2283.

Pergunta:

Na frase «Frequentemente, dedicamos uma aula à leitura de poesia», a forma verbal tem valor iterativo ou habitual? Porquê?

Obrigada.

Resposta:

A frase apresentada veicula um valor aspetual gramatical habitual.

Tanto o aspeto iterativo como o habitual estão relacionados com a expressão da repetição de situações. O aspeto habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1. Por seu turno, o aspeto iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1.

Ora, na situação apresentada não se estabelece qualquer tipo de limite temporal para a situação descrita, pelo que ela é perspetivada como marcada por um padrão de repetição ilimitado. Por esta razão, veicula um valor aspetual habitual que é reiterado pelo advérbio de modo frequentemente.

Disponha sempre!

 

1.  Cunha in Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, p. 586.

Verbos para o Carnaval
Carnavalear e carnavalizar

Esta semana, a professora Carla Marques aborda a questão dos verbos que possam descrever situações relacionadas com o período de Carnaval.

(Programa Páginas de Português, da Antena 2, de 02/03/2024)

Pergunta:

Na frase «Submetendo-os a uma regra», qual a função sintática de «a uma regra»?

Complemento oblíquo ou complemento indireto? O verbo seleciona complemento indireto quando se encontra na forma reflexa, como em «Ele submeteu-se-lhe», mas não me parece que, neste contexto, a expressão iniciada por preposição seja complemento indireto, já que não seria aceitável a formulação «Submetendo-lhos».

Agradeço antecipadamente a vossa resposta.

Resposta:

O constituinte apresentado não constitui uma frase independente. Trata-se, antes, de uma oração que, por não ter autonomia sintática, se subordinará a outra oração numa frase complexa, como acontece, por exemplo, na frase (1):

(1) «Deu-lhes indicações sobre o modo de agir, submetendo-os a uma regra.»

O constituinte «submetendo-os a uma regra» é uma oração gerundiva e, no seu interior, o verbo submeter gera função sintática. Este verbo, usado com o sentido de «sujeitar», é transitivo direto e indireto, o que se verifica na oração em análise. Deste modo, o pronome os desempenha a função de complemento direto. Resta, agora, determinar a natureza do constituinte «a uma regra». Se aplicarmos o teste de pronominalização para identificação do complemento indireto, verificamos que ele não é possível:

(2) «*Deu-lhes indicações sobre o modo de agir, submetendo-lhes os amigos1

Isto significa que o verbo submeter rege a preposição a e que o constituinte «a uma regra» é um grupo preposicional com a função de complemento oblíquo2.

Disponha sempre!

 

*indica inaceitabilidade do teste.

1. Substituiu-se o pronome os pelo constituinte «os amigos» para clareza de análise.

2. Esta mesma análise é apresentada em Raposo, Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editores.

Pergunta:

Pode esclarecer-me sobre os constituintes da frase «E queria passar a tarde a ver filmes»?

«A ver filmes» é modificador ou complemento oblíquo?

Resposta:

A oração «a ver filmes» desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

No caso em análise, o verbo passar é usado numa construção que tem o sentido de «gastar tempo a fazer alguma coisa». Neste uso, este verbo é transitivo direto e indireto, tendo a seguinte estrutura: «passar + complemento direto + complemento oblíquo (=preposição a + oração não finita)1.

Assim, a oração não finita «ver filmes» está integrada no interior de um grupo preposicional introduzido pela preposição a. É este grupo preposicional que desempenha a função de complemento oblíquo. Note-se que se trata de um constituinte que não pode ser omitido da frase porque constitui um argumento do verbo, que o exige para completar o seu sentido, o que indica que não se trata de um modificador.

Disponha sempre!

 1. Cf. Raposo, Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editores, p. 594.

 Nota (03/03/2025): Convém acrescentar que a análise apresentada decorre do Dicionário Terminológico, documento de apoio ao estudo da gramática no ensino básico e secundário em Portugal. No entanto, a estrutura em  questão é muito marginal e pode ter uma análise alternativa em gramáticas mais especializadas. Por exemplo, no quadro da Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013-2020, pp. 1268-1270), é possível a leitura de passar como semiau...