Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
139K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Antes de e após isso ocorrer, você já deveria ter aprendido!», é obrigatório incluir o de logo após o antes?

Ou, pelo menos, recomendado?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Na frase em questão, não se deve associar a preposição de ao termo após.

Na frase transcrita em (1) está presente uma construção elítica que corresponde à frase transcrita em (2). A elipse sinaliza-se com [-]:

(1) «Antes de [-] e após isso ocorrer, você já deveria ter aprendido!»

(2) «Antes de isso ocorrer e após isso ocorrer, você já deveria ter aprendido!»

Como se observa em (2), a preposição de está incluída na locução «antes de», mas não se encontra associada à preposição após. Deste modo, quando ocorre a elisão da oração «isto ocorrer», não se deve acrescentar nenhum elemento à segunda oração.

Acresce ainda que, neste caso, não se considera que estejamos perante um caso de coordenação de locução/preposição, mas sim de um caso de coordenação de orações, estando uma das quais omitida da frase.

Disponha sempre!

Pergunta:

Desde há muito que me incutiram a não adotar o estrangeirismo e-mail ou email, e usar «correio eletrónico» na sua substituição. O mesmo para site, substituindo-o por «endereço eletrónico». Não sei se é uma abominação importada pela comunidade francófona, que é adversa a estrangeirismos de origem inglesa...

Mas também sei que a língua evolui e não sei até que ponto, nos dias que correm, já são aceites esses e este estrangeirismo na língua portuguesa: voicemail.

A pergunta é: voicemail ou «correio de voz»?

 

Resposta:

A integração de termos estrangeiros numa língua é um processo comum, que tem ocorrido ao longo dos séculos, e que, em muitos casos, acabou por resultar num aportuguesamento dos estrangeirismos importados.

A língua francesa, no decurso do século XIX e início do século XX, teve, como é sabido, grande influência sobre a língua portuguesa. Hoje, o português apresenta muitas palavras que entraram na língua como estrangeirismos e que já não são sentidas como tal. Veja-se o caso de croissant (ou cruassã), maionese, puré, batom, moda, vitrine, entre outras.

Embora se trate de um processo comum na evolução das línguas, que deve ser visto com normalidade, também não deixa de ser verdade que, nas últimas décadas, se tem assistido a uma crescente importação de anglicismos. Atualmente, verifica-se a utilização de termos de origem inglesa inclusive em situações para as quais existem opções em português com o mesmo sentido. Como forma de resistir a este fenómeno e de alertar para esta tendência que empobrece o português, o Ciberdúvidas criou recentemente a rubrica 100% Português, no âmbito da qual apresenta propostas de termos portugueses para substituir os anglicismos em uso no quotidiano (acompanhe-se no mural de Facebook e às sextas-feiras na Abertura).

Quanto ao termo voice mail, concordamos que poderá facilmente ser substituído por uma expressão portuguesa. A opção «correio de voz» está já bastante generalizada e constitui uma alternativa adequada e, portanto, preferível à expressão inglesa...

Pergunta:

Antes de deixar a minha dúvida, gostaria de expressar a minha admiração e a minha gratidão pelo vosso trabalho. Muito obrigada!

Outro dia, conversava com umas companheiras e surgiu-nos uma dúvida com a seguinte frase: «Mal posso esperar para receber-te.» Ficámos a pensar se não seria mais correto dizer: «Mal posso esperar para te receber.»

Chegámos a discutir o seguinte: que é correto colocar o pronome antes do verbo, porque o verbo está no infinitivo e é antecedido da preposição para. Uma colega disse que as preposições atraem o pronome para antes, exceto a preposição a. Outra colega afirmou que se pode usar o pronome antes ou depois, mas que é mais natural e coloquial que o pronome venha antes do verbo. Eu, pessoalmente, penso que, pelo facto de o verbo estar no infinitivo, também é correto usar o pronome depois do verbo.

Resumindo, não chegámos a nenhuma conclusão e, por isso, deixo aqui a minha dúvida.

Mais uma vez, muito obrigada!

Resposta:

No caso em apreço, é possível colocar o pronome antes ou depois do verbo.

Tipicamente, as preposições atraem o pronome para uma posição proclítica, ou seja, para antes do verbo.

No entanto, no caso das orações infinitivas introduzidas por uma preposição, admite-se tanto a colocação enclítica (depois do verbo) como a proclítica (antes do verbo) do pronome clítico1.

A exceção a este uso verifica-se com as preposições a e com, que normalmente desencadeiam a colocação do pronome em posição enclítica.

Assim, no caso de uma oração subordinada infinitiva introduzida pela preposição para, aceitamos as duas possibilidades de colocação do pronome clítico:

(1) «Mal posso esperar para receber-te.»

(2) «Mal posso esperar para te receber.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradecemos as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Martins, in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2280 e ss.

Pergunta:

Por formação de radicais, a palavra psicopata seria usada e aplicada a qualquer doente mental.

Em sendo assim, quando e por que psicopata passou a designar só um tipo de doente mental, não qualquer tipo no caso?

Psicopata e antissocial, do transtorno de personalidade antissocial (psicopatia), estão ligados?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Os termos psicopata e psicopatia foram formados a partir de radicais gregos psic(o)- + -pata e psic(o)- + -patia, respetivamente. Segundo o Dicionário Houaiss, os registos dos primeiros usos datam do final do século XIX. No entanto, por meio da história da Psicologia, percebemos que o termo foi generalizado na Alemanha pelo psiquiatra Julius Ludwig August Koch, que terá usado o termo psicopático na sua obra As inferioridades psicopáticas, de 1891. Não terá sido o primeiro a usar a palavra, mas a sua generalização a ele se deve. Inicialmente, na literatura médica, a palavra era usada para referir os doentes mentais de forma genérica e vaga, não existindo ainda uma ligação entre a psicopatia e a personalidade antissocial. 

Os estudos apontam uma clara evolução do significado da palavra psicopata a partir dos estudos do psiquiatra norte-americano Hervey Milton Cleckley. É sobretudo com a sua obra, The Mask of Sanity, publicada em 1941, que a palavra começa a ganhar a dimensão mais precisa que detém hoje, uma vez que o autor nesta publicação apresenta a primeira descrição clínica da psicopatia, dando ao termo (e seus relacionados) um significado mais próximo daquele que ele hoje detém. Como sintetiza Rogério Paes Henriques, «Para Cleckley, o transtorno fundamental da psicopatia seria a "demência semântica", isto é, um déficit na compreensão dos sentimentos humanos em p...

Pergunta:

Como se chama um verbo com múltiplas regências? Verbo "multifuncional"? "Multirregido"? "Multifocal"?

O verbo indicar é um exemplo:

1) Eu o indiquei para o cargo.

2) Eu lhe indiquei ficar longe daquela pessoa.

3) Ele se indicou para o papel no cinema.

Como dizer só em um ou só em poucos termos que é um verbo "multiúso"?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Poderemos designar estes verbos como verbos de regência múltipla.

No caso do verbo indicar, recordemos que este pode reger dois tipos de preposição: para e com. Nos casos apresentados abaixo, como (1) e (2), o verbo tem exatamente o mesmo funcionamento, pois é um verbo transitivo direto e indireto que se constrói com um objeto direto e com um constituinte introduzido pela preposição para:

(1) «Eu o indiquei para o cargo.»

(2) «Ele se indicou para o papel no cinema.»

Note-se que o verbo indicar também pode reger a preposição como, o que se observa em (3):

(3) «Sempre tratei o António como meu amigo.»

No caso da frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (4), o verbo indicar não rege nenhuma preposição. No entanto, trata-se de uma frase com construção duvidosa, pelo que o mais adequado seria que se optasse por uma construção como a apresentada em (3):

(4) «Eu lhe indiquei que ficasse longe daquela pessoa.»

Não é, todavia, impossível construir o verbo indicar com uma estrutura infinitiva, como se observa em (5):

(5) «Ele indicou estar cansado.»

Disponha sempre!