Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
97K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Queria perguntar sobre três adjetivos relacionados com o choro: choroso, lagrimoso (lacrimoso), plangente.

Como compreendi a partir das definições dos dicionários, estes adjetivos podem ser considerados como sinónimos. Contudo, parece que existe uma diferença estilística entre eles.

Choroso parece ser uma palavra neutra, enquanto lagrimoso (lacrimoso) e plangente parecem ser palavras cultas, pertencentes à literatura. Será assim mesmo?

Também encontrei os exemplos em que todos os adjetivos mencionados se usam com a palavra voz: «voz chorosa»; «voz lagrimosa»; «voz plangente».

Digam, por favor, se estas três combinações de palavras têm o sentido diferente. Se sim, quais são as diferenças?

Desde já agradeço.

Resposta:

Os adjetivos choroso e lagrimoso poderão ser considerados sinónimos. Todavia, o adjetivo plangente já não se considerará um sinónimo perfeito dos anteriores.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, as palavras em análise têm a seguinte significação:

(1) choroso: «que verte lágrimas devido a uma forte emoção»

(2) lagrimoso: «que chora; que está banhado em lágrimas»

(3) plangente: «que exprime tristeza ou dor ou que é próprio de quem se lastima; que plange»

Concluímos, deste modo, que choroso e lagrimoso envolvem ambos as lágrimas, ao contrário de plangente que descreve a situação de se lastimar por tristeza ou dor, mas sem envolver diretamente o choro.

Relativamente aos usos de choroso e lagrimoso/lacrimoso, poderemos ainda acrescentar que o último adjetivo revela uma menor frequência de ocorrências do que o primeiro, no Corpus do Português, de Mark Davies e será sentido como mais literário.

Os adjetivos em análise podem ser combinados com diferentes nomes. Eis alguns exemplos, recolhidos do Corpus do Português, de Mark Davies:

(4) choroso: «final choroso», «rapaz choroso», «tom choroso», «olho choroso», «delírio choroso»

(5) lagrimoso/lacrimoso: «jovem lagrimoso», «ar lagrimoso», «som lacrimoso», «rosto lacrimoso»

Pergunta:

De uma forma muito resumida, costuma-se dizer que a forma simples do gerúndio indica uma ação em curso e a forma composta, por sua vez, indica uma ação concluída antes da ação expressa na oração principal.

No entanto nestas duas frases, as duas formas do gerúndio parecem indicar o mesmo tempo, posterioridade à ação expressa na oração principal:

Gerúndio simples: «Lendo o livro, podes sair.»

Gerúndio composto: «Tendo lido o livro, podes sair.»

Na minha leitura, as duas têm o valor de futuro. Está certa a leitura?

É uma particularidade das orações que exprimem a ideia de condição? Poderia dar-me outros exemplos de frases em que as duas formas têm o mesmo valor?

Obrigada.

Resposta:

Com efeito, no caso em apreço, o valor das duas formas verbais é similar.

O gerúndio simples estabelece o seu valor temporal pela relação que mantém com o predicado da oração subordinante. Quando a oração gerundiva é colocada em início de frase, o uso do gerúndio pode propiciar uma leitura com valor de anterioridade temporal relativamente ao tempo da subordinante:

(1) «Chegando a casa, foi dormir.»

O gerúndio simples pode igualmente veicular uma leitura de sobreposição relativamente ao tempo da subordinante:

(2) «Levando os alunos pela rua, mostrou-lhes os pontos de interesse.»

O gerúndio composto, por seu turno, assinala uma situação concluída, terminada e é sempre anterior ao tempo que toma como referência, que corresponde ao momento da enunciação. Assim, quando a oração gerundiva (composta) é colocada antes da oração subordinante, o seu valor aponta para a anterioridade temporal1:

(3) «Tendo enviado a mensagem, foi descansar.»

Assim, verificamos que os valores veiculados pelo gerúndio simples e composto nas frases (1) e (3) são idênticos, tal como se verifica nas frases apresentadas pela consulente.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 549-552.

Pergunta:

Sendo aspirante a tradutor-intérprete, deparo-me, por vezes, com dúvidas relativas ao uso correto de certas expressões (idiomáticas, populares, entre outras).

Neste sentido, venho pelo presente perguntar se é legítimo o uso da expressão «fora de órbita» no seguinte contexto, com o intuito de dar à mesma uma conotação negativa e com o intuito de esta significar que algo é anormal e negativamente muito elevado:

«O ano passado, em algumas águas, as condições revelaram ser de um calor tão inusitado que os níveis de stress térmico estavam ao pé da letra fora de órbita para o sistema de alerta da NOAA.»

Muito obrigado pela atenção!

Resposta:

A construção proposta parece um pouco “barroca” para o pretendido. Antes de mais, será excessivo o uso de duas construções de valor estilístico seguidas («ao pé da letra» e «fora de órbita») num texto de objetivo não literário.

Para além disso, o valor da construção «fora de órbita», no contexto em que está a ser usada, não me parece claro, pelo que não está assegurado que signifique o que pretende. Não esqueçamos que o uso mais comum de «fora de órbita» ativa o sentido de «que está ou é mentalmente perturbado»1, o que poderá introduzir ruído na interpretação do enunciado.

Proponho, por estas razões, que faça uso de uma construção mais simples e transparente, como:

(1) «[…] as condições revelaram ser de um calor tão inusitado que os níveis de stress térmico eram excessivos para o sistema de alerta da NOAA.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa

Pergunta:

A crítica é, em traços gerais, uma análise/apreciação positiva ou negativa de um objeto.

Essa "apreciação" (positiva ou negativa) poderá ser concretizada recorrendo a adjetivos valorativos ou depreciativos?

Cordialmente.

Resposta:

A crítica pode ser efetuada recorrendo tanto a adjetivos valorativos como depreciativos.

A produção de um texto que tem por objetivo a crítica de uma determinada situação ou objeto envolve uma análise apreciativa que procura identificar os aspetos que se realçam pela positiva ou pela negativa (ou até ambos). Deste modo, a expressão da opinião do locutor que assume o papel de crítico pode verter-se em léxico da valoração positiva ou negativa em função do juízo de valor que a apreciação do objeto/situação motivou.

Neste contexto, não se deve confundir o objetivo comunicativo do texto e até a sua organização estrutural (enquanto género de apreciação crítica) com o significado de crítica entendido como «julgamento, dito desfavorável, usado para censurar alguém ou alguma coisa, realçando-lhe os defeitos»1, um dos valores do nome crítica, que está presente em usos como (1), no qual a palavra equivale a «dizer mal, censurar»:

(1) «Para se destacar, ele dirige as suas críticas ao trabalho dos colegas.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

Gostaria de confirmar a seguinte função sintática:

«Nem sempre consigo fazer o que gostaria.»

«Nem sempre»: modificador

Agradeço, desde já, a atenção.

Resposta:

Com efeito, nesta frase, o constituinte «nem sempre» desempenha a função sintática de modificador (do grupo verbal).

Os modificadores do grupo verbal são constituintes que «contribuem para o significado do sintagma verbal, quantificando, qualificando ou localizando (temporal ou espacialmente) a situação que se descreve, mas não representam participantes na situação ou no evento descrito pelo verbo.»1.

O constituinte que incide sobre o grupo verbal com a função de modificador, pode ser omitido da frase uma vez que não é um argumento do verbo, ou seja, o verbo não precisa deste constituinte para preencher a sua significação. Neste caso, o verbo conseguir é transitivo direto, pelo que pede um complemento direto para explicitar o seu valor semântico. Por sua vez, o constituinte «nem sempre» incide sobre o grupo verbal acrescentando-lhe um valor de localização temporal que corresponde a uma negação parcial temporal, mas este valor não é essencial para a significação do verbo, apenas a modifica.

Disponha sempre!

 

1. Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, p. 1161.