«(...) a língua que hoje usamos, para ter sido usada nesse e noutros documentos, teria que ter nascido antes, ou até muito antes. Mas quando? Neste livro, em sintonia com o que fazem outros historiadores da língua como Ivo Castro, Fernando Venâncio defende que a nossa língua tenha começado a nascer ainda na Alta Idade Média, talvez depois do século VI.»
Poderíamos começar esta crónica dizendo que as boas notícias são que a nossa língua é muito mais antiga do que se pensava. As más notícias são que a nossa língua não é nossa.
Mas não. As boas notícias são que temos um magnífico livro para ler: Assim nasceu uma língua, de Fernando Venâncio. E as más notícias? Não há más notícias. Assim nasceu uma língua é um ensaio que transporta em cada linha o entusiasmo que o autor tem pelo estudo da história da nossa língua, que sabe explicar clara e concisamente o que é confuso, que avança hipóteses histórico-linguísticas ainda pouco conhecidas do grande público e que não se furta à polémica, dando gosto de ler mesmo quando não se concorda necessariamente com tudo.
Mas voltemos ao parágrafo inicial. De que maneira é que a nossa língua é muito mais antiga do que pensávamos? E de que maneira é que ela não é nossa?
É comum encontrar a opinião de que a língua portuguesa nasceu algures no século XII, ali com a criação do Reino de Portugal. Ainda há poucos anos se comemorou os 800 anos do “nascimento” do português, datando-o convencionalmente a partir de 1214, com o testamento de Afonso II [1885-1223] redigido na nossa língua no dia 27 de junho desse ano. Ora, se há coisa certa é que a língua que hoje usamos, para ter sido usada nesse e noutros documentos, teria que ter nascido antes, ou até muito antes. Mas quando? Neste livro, em sintonia com o que fazem outros historiadores da língua como Ivo Castro, Fernando Venâncio defende que a nossa língua tenha começado a nascer ainda na Alta Idade Média, talvez depois do século VI.
A “certidão de nascimento” da nossa língua, ou a sua diferenciação em relação ao latim e às outras línguas latinas, está no momento em que no Noroeste da nossa península se começar a perder as letras n e l entre vogais, transformando palavras como dolor e color, que todas as outras línguas latinas têm (douleur em francês, colore em italiano, etc.) nos nossos dor e cor. Às vezes ponho-me a pensar se isto não terá ocorrido durante a “era obscura” do Reino Suevo, umas quantas décadas do século VI de que não nos sobram quaisquer documentos. Será que o uso do latim cultivado entrou então em decadência, dando azo à evolução de uma nova língua?
Mas aqui levanta-se um problema: se a nossa língua já existia tanto tempo antes de existir Portugal, que língua era essa? A verdade, como Fernando Venâncio não perde ocasião de no-la relembrar, é que Portugal foi fundado com uma língua que não era o português, mas antes a língua que compartilhava o norte do novo reino com todo o espaço da antiga Gallaecia romana: o galego. Fomos fundados falando uma língua que não era só nossa, e que à medida que foi sendo trazida para o sul de ocupação muçulmana, não era de todo a nossa. Começámos o nosso país com uma língua emprestada, e depois apagámos da memória coletiva o facto de nunca a termos devolvido…
Se pensarmos bem nisso, nenhuma destas novas maneiras de olhar é especialmente perturbadora: trata-se apenas de uma forma razoavelmente desapaixonada de entender os vínculos entre nação, cultura e língua, que muitas vezes só refazemos retrospectivamente. Quando Portugal foi fundado, não havia necessidade de se fundar com ele uma língua, nem a bem dizer uma nação: estava-se simplesmente a elevar um conde ao título de rei. Usava-se latim, para os documentos cultos, ou usava-se “língua vulgar” para o dia-a-dia. E essa língua vulgar, no nosso caso, era a mesma dos galegos.
Uma pergunta de muito mais difícil resposta é: e o que encontraram esses portucalenses que falavam galego quando vieram para o Sul? É de supor que encontrassem muçulmanos que falassem árabe, nomeadamente os que fossem mesmo árabes ou talvez também os berberes e outros “mouros”. Mas esses seriam uma minoria. E o que falavam os judeus no território hoje português? E os cristãos, que seriam talvez a maioria, ou pelo menos uma minoria muito forte em cidades como Al-Usbuna, a que chamamos hoje Lisboa (reparem que o n entre vogais ainda lá estava no nome árabe)? Esses falavam uma língua latina a que à falta de melhor chamamos “moçárabe”. Mas o moçárabe (a palavra designava as comunidades de cristãos que viviam entre árabes) não era falado da mesma forma em Lisboa ou Toledo. Os poucos poemas que nos restam, escritos em alfabeto arábico, são quase iguais às cantigas de amigo galaico-portuguesas, só que com as palavras árabes cid e habib, em vez de senhor e amor.
É com a construção de um reino independente e no confronto entre o galego do Norte e esse irremediavelmente misterioso “lusitano-moçárabe” do Sul que se vai construindo uma língua. A que em breve se agregará aquilo que podemos considerar a sua segunda carta de alforria: aquele “esplendor do caos”, como Fernando Venâncio chama à introdução do til, esse maravilhoso til em cima das vogais que só temos desta maneira em português e de que precisamos para tudo na nossa língua: para dizer mãe, pão, cão e não (e antes até sim, pondo um til em cima do i).
O capítulo do til é um dos melhores deste livro, mas entretanto já se me acabou o espaço para a crónica. Que fazer? Talvez só isto: ide comprá-lo e oferecê-lo no Natal, porque é um livro imperdível para amarmos um bocadinho mais a língua que recriamos todos os dias.
N. E. (06/04/2020) – A forma "Fernãdo Venãcio", incluída no título, é um jogo gráfico alusivo ao uso frequente do til na escrita do português medieval. A forma correta do nome do autor em causa é, como sempre, Fernando Venâncio.
Crónica que o historiador e político português Rui Tavares assinou no jornal Público em 23/12/2019.