Ozias Filho, poeta, fotógrafo, jornalista e editor, com várias obras publicadas, revela-nos neste ensaio poético-fotográfico intitulado O Avesso da Casa, Ed. Urutau, 2025, a morada dos silêncios, das interrogações, do espanto, gerados no âmago de um tempo marcado pela pandemia, pelo isolamento, pela solidão, pelo confronto connosco e com o nosso próprio avesso. Tal como refere o autor, não procura respostas, mas sim a indagação, num «processo de catarse criativa» (p. 14), que permite esse constante questionamento que alicerça a criação (p. 14). Neste caso, essa indagação é feito através de duas partes, de duas artes: a poesia e a fotografia. E, aliás, ambas as artes capturam o instante, pois a fotografia, como reconheceu Susan Sontag em Ensaios sobre Fotografia, é também um gesto poético, eternizando aquilo que está condenado ao desaparecimento. Assim, fotografar é participar da mortalidade e da vulnerabilidade de alguém ou de algo, numa resposta à finitude, numa celebração do efémero. Por seu turno, como forma de evasão desse efémero que aprisiona vem a escrita: «O avesso da casa abre portas/ com imagens até onde a vista alcança/ mesmo que de olhos fechados/ mas é no papel que se refaz/ livro livre vida casa/ outra vez» (p. 17).
Nesta esteira, notamos que no ventre da «bolha higiénica» o mundo chega pela televisão, os outros mostram-se pelo WhatsApp. Neste contexto, assoma o paradoxo, a ambiguidade, a ilusão de tocar o invisível «fé é acreditar que o invisível/ está ao alcance das mãos/ não é preciso ver para crer/ que o nosso mundo de paraíso/ tem os infernos cheios» (p. 24). Este é o retrato ensaístico centrado no tempo em que os supermercados substituíram as férias, dominado pelo reino de máscaras e de ventiladores, pois como é referido: «o silêncio do caos/ agarra-se à respiração / digere pulmões com a sua fome/obsoleta ventiladores/e não o conseguimos agarrar» (p.38). Por outras palavras, o tempo de incertezas e de medo em que «o ser humano é o seu próprio/ inverno» (p.42).
As incertezas aliam-se à ambiguidade, que segundo sugere Roland Barthes em Câmara Clara, irmana a fotografia e a poesia, visto que ambas revelam e silenciam, num convite ao mistério, mas também ao olhar renovado sob uma nova luz. Assim, essa ambiguidade inquisitiva, plena de contradições, habita igualmente as fotografias, impregnadas de tanta poesia como as palavras. Nesta sequência, do muito que se poderia dizer, foi limitar-me a evocar apenas algumas dessas fotografias. A primeira mostra-nos três pares de sapatos pousados no limiar de uma porta fechada, evidenciando-se o contraste entre tons de verde e de castanho. Na segunda, temos a visão de uma janela para o exterior, entre as árvores, no chão, vemos um buraco em formato de coração – imagem que poderia inspirar uma tese, um poema ou um romance, como sucede com outras. Com efeito, em diversas fotografias há uma fusão entre interior e exterior, transmitindo uma sensação da desconstrução, do avesso. Saliento também a presença do cão, símbolo de um afecto que espera infinitamente, além de todas as restrições. Destaco também o caderno escrito com a caneta pousada, espelhando a escrita como espera, como força criativa; o sofá habitado por uma figura feminina; a máscara que encobre o rosto; a declaração de amor em Inglês, para Rosa; o homem observado da janela, percorrendo o caminho junto aos contentores, envergando o guarda-chuva verde, que tanto pode simbolizar a esperança, como a resistência, o caminho solitário; o circulo que pode ser o olho ou o óculo através do qual se observa o corredor indefinido pela distância.
Sem dúvida, este é um livro para ser lido, relido, revisitado várias vezes, tanto nas palavras, como nas imagens, nesse todo formado de universos irmãos, numa sinfonia harmoniosa de artes que, não apenas cristalizam a brevidade dos instantes, de um tempo social e histórico muito peculiar, como o indagam, ajudando-nos a construir novos sentidos numa casa que é canto do universo, como a designou Gaston Bachelard, mas que é, acima de tudo, vida.
Referências bibliográficas
Bachelard, Gaston. A Poética do Espaço, Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes, 2008.
Barthes, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, S.A., 1984.
Ozias Filho. O avesso da casa, Cotia: Urutau, 2025.
Sontag, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986.
Texto publicado em 3 de julho de 2025 na revista digital Caliban e aqui transcrito com a devida vénia, mantendo a ortografia de 1945, seguida pela autora.