«Não se tenha a ilusão de que falar “portunhol” seja garantia de se ser compreendido [...].»
O português e o espanhol em conjunto constituem uma comunidade linguística de quase 800 milhões de falantes. Não restam, pois, dúvidas quanto ao potencial de cada uma das línguas e das duas em conjunto. Por isso, a Organização de Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), a que Portugal pertence, tem apostado no reforço de sinergias para a gestão de ambas as línguas e no incentivo da intercompreensão entre falantes de português e de espanhol, com base na sua origem comum, o latim, e na sua grande proximidade em termos gramaticais e lexicais. Pelo que ouço, porém, a questão da intercompreensão não está completamente deslindada para muitos portugueses.
Existe a ideia de que os portugueses percebem os espanhóis, mas estes não percebem os portugueses, o que não anda longe da verdade. A fonética do português falado em Portugal não é fácil para quem tem pouco contacto com a língua. No português europeu (PE) fazemos quase sempre uma redução das vogais átonas (não acentuadas). Repare-se no modo como pronunciamos as vogais sublinhadas a negrito nesta [mesma] frase. Muitos falantes de espanhol (e não só) têm dificuldades em as distinguir e mesmo em as ouvir. O espanhol tem cinco vogais (a / e / i / o / u) e pronunciam-se sempre abertas. Uma forma como “caramelo” soa muito diferente se pronunciada em português ou em espanhol. Quem escuta PE pela primeira vez não mais ouve do que uma sequência de consoantes e ruído, com pouquíssimas vogais pelo meio.
A segunda ideia é a de que os espanhóis são inaptos para aprender línguas estrangeiras. A primeira vez que ouvimos qualquer língua estrangeira, mesmo próxima da nossa, apenas conseguimos ouvir um contínuo sonoro, uma “música”, e não conseguimos compreender o que é dito. Para compreender, temos que habituar o ouvido à “música dessa língua”, aos seus sons, às suas combinações. Se se habituar a ouvir PE, qualquer falante de espanhol acabará por aprender a compreender o que ouve. É o que acontece e.g. aos continentais ao ouvir micaelenses menos escolarizados: precisam de tempo para habituar o ouvido. Por razões económicas, em Portugal opta-se por legendar filmes e programas estrangeiros, em vez de os dobrar. Esta opção, se extremamente injusta para os analfabetos, acaba por ser vantajosa para a generalidade da população, que se habitua desde pequena a ouvir os sistemas sonoros de várias línguas, i.e. a ter um input de sons muito rico, o que facilitará a aprendizagem de línguas estrangeiras. Os espanhóis, por seu turno, tirando nas regiões onde existem línguas cooficiais, ouvem tudo em espanhol (televisão, cinema, canções). Estas explicações esclarecem também, creio, a terceira ideia feita sobre os espanhóis, i.e., a de que têm má vontade e por isso não compreendem o PE.
Por fim, em geral os portugueses acham-se capazes de falar espanhol, de arranhar um pouco. Apesar de serem muito parecidas e de, quando em contacto, serem muito pervasivas, as línguas portuguesa e espanhola têm muitos falsos amigos, muitas armadilhas, aos níveis lexical, sintático e semântico. Não se tenha a ilusão de que falar “portunhol” seja garantia de se ser compreendido, nem de se comunicar com mais eficácia do que falando português de forma pausada e bem articulada.
A intercompreensão é desejável e existe. Para ser possível, é necessário que os vizinhos peninsulares tenham a oportunidade de ouvir a língua do outro, que se habituem a fazê-lo. E, como todos os bons exemplos, também o da prática da intercompreensão deverá vir de cima.
Será, então, necessário um português discursar em espanhol numa cerimónia oficial entre portugueses e espanhóis? Será coerente com a aposta na intercompreensão, por parte da OEI? Será bonito ou adequado? Bom, esta última é uma questão de gosto e gostos não se discutem.
Artigo publicado em 7de junho de 2020 no Diário de Notícias.