A proximidade entre o português e o espanhol (historicamente, o castelhano) pode gerar equívocos. Quem siga as recomendações que a Fundéu (Fundación para el Español Urgente) destinadas à comunicação social de língua espanhola foi recentemente surpreendido com um parecer sobre o verbo descambiar, um derivado de cambiar. Se cambiar é muitas vezes o mesmo que trocar em português, será que descambiar é a réplica castelhana, paralela, exata e quiçá incorreta, do tão controverso destrocar1 do português?
A resposta é sim e não.
Não, se falarmos do espanhol ibérico, mas sim, se o espanhol for o de vários países do continente americano – Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Peru e Venezuela –, conforme assinala o dicionário da Real Academia Espanhola.
Em Espanha, descambiar, como derivado de cambiar, tem sido alvo de juízos nem sempre favoráveis, quando empregado no sentido de «devolver». Por exemplo, Manuel Seco e Elena Hernández, em Guía Práctica del Español Actual (Madrid, Espasa Libros, 1999, p. 116), consideravam que descambiar era usado impropriamente quando significava o mesmo que cambiar (ou seja, trocar, em português), com o argumento de descambiar querer dizer «destrocar, deshacer el cambio» (= «destrocar, desfazer a troca»). Os dois autores condenavam, portanto, uma frase como «tengo que descambiar este billete» (= «tenho que devolver este bilhete»), e favoreciam cambiar no mesmo contexto.
Contudo, em 07/01/201, a propósito do final da campanha de Natal e da necessidade de muitos consumidores devolverem bens adquiridos, a Fundéu emitiu uma recomendação em que considera não se justificar a rejeição deste verbo no sentido de «devolver», porque, além de se tornar semântica e referencialmente aceitável (trata-se de cancelar uma troca comercial, ou seja, é uma "destroca"), tem já uso generalizado.
Por outro lado, o descambiar latino-americano espelha bem o destrocar, já que ambos significam «trocar uma nota ou uma moeda pelo montante correspondente em notas ou moedas de menor valor». Refira-se que destrocar, tantas vezes censurados pelos autores prescritivistas portugueses e brasileiros, encontra hoje maior tolerância normativa.
De qualquer modo, deve assinalar-se que descambiar não é exatamente o mesmo que destrocar, tendo em conta o uso concreto de Espanha. Trata-se, portanto, de um caso que parcialmente se integra na lista dos muitos falsos amigos existentes entre o espanhol e o português, tal como se acham, por exemplo, elencados num artigo muito útil publicado no âmbito da atividade de tradução da União Europeia, no boletim a folha, n.º 47 — primavera de 2015.
1 O Dicionário Houaiss regista destrocar com três aceções: «1 anular, desmanchar a troca de»; «2 Regionalismo: Bahia. trocar (dinheiro)»; «3 Regionalismo: Portugal. efetuar troca de; trocar». Não obstante, deve observar-se que, em Portugal, é muito corrente o uso de destrocar na aceção de «trocar dinheiro».