«(...) O espanhol tem de ser aprendido por falantes de outras línguas e, além do prestígio cultural, tem de se afirmar como língua de ciência e de tecnologia. (...)»
O espanhol é já a segunda língua materna do mundo, com 500 milhões de falantes, segundo um relatório apresentado há dias pelo Instituto Cervantes, o equivalente ao nosso Instituto Camões. Significa isto que cerca de 6% da população do planeta aprendeu desde o berço o idioma falado no país vizinho, e que é oficial também em duas outras dezenas de países. Mas Luís Garcia Montero – poeta, professor catedrático de Literatura e presidente do Cervantes – não esqueceu de acrescentar um alerta às palavras de satisfação: o crescimento não se pode limitar à demografia, ou seja, o espanhol tem de ser aprendido por falantes de outras línguas e, além do prestígio cultural, tem de se afirmar como língua de ciência e de tecnologia.
É interessante como este alerta vale para o português também. Quando era presidente do Instituto Camões, o atual embaixador no Brasil, Luís Faro Ramos, disse-me calcular serem uns 270 milhões os falantes de português no mundo, 265 milhões deles como língua materna, mas que era importante que se afirmasse fora das fronteiras da lusofonia e das comunidades emigrantes, e dava o exemplo do interesse dos chineses pelo nosso idioma. Os números são hoje certamente um pouco mais elevados, sobretudo graças ao crescimento demográfico em Angola, país que, juntamente com o gigante Brasil, é o que mais falantes dá ao português. Aliás, também no caso do espanhol não é Espanha o grande país hispanófono, mas sim o México.
Todas as estatísticas sobre as línguas a nível mundial geram dúvidas legítimas: por exemplo, o árabe tem mais falantes do que o português, mas, tirando o árabe clássico, que é comum, a língua falada nas ruas de Rabat a Bagdad apresenta diferenças. Também há a questão do nível de domínio da língua, que se coloca, por exemplo, em relação ao inglês, língua franca que tem muitos mais falantes do que aqueles que a têm como língua materna. Mas se ultrapassarmos estas questões e seguirmos a Enciclopédia Britânica (que cita o Ethnologue), é possível dizer que as línguas mais faladas no mundo são o inglês, o mandarim e o hindi, com o português no nono lugar, e que se tivermos apenas em conta os falantes nativos então a hierarquia é o mandarim, o espanhol e o inglês, com o português em sexto.
Contudo, mandarim e hindi são falados essencialmente num único país, China e Índia, respetivamente (mesmo as diásporas desses países usam várias línguas). O que significa que, como línguas de comunicação internacional, inglês, espanhol, português, árabe, francês e russo são ainda mais relevantes. E no caso do português, como referiu Luís Faro Ramos na dita entrevista ao DN [Diário de Notícias], há a destacar ser claramente uma língua policêntrica, falada em países de diferentes continentes. Claro que há muito a fazer para reforçar esta condição, e se em Angola cada vez mais o português é a língua falada em casa, já em Timor-Leste, como testemunhei numa visita em 2021, é mesmo obrigatório continuar a apoiar o país na consolidação da língua que escolheu no momento da independência como fator de identidade nacional, juntamente com o tétum.
Regresso ao presidente do Cervantes, agora à ideia que defendeu numa conversa em Lisboa este ano e que publiquei no DN como entrevista: «Potenciar o ibero-americano é importante para defender a nossa presença comercial, social e cultural no mundo.»
Sim, português e espanhol juntos somam perto de 800 milhões de falantes nativos, número que em poucos anos se aproximará dos mil milhões. A proximidade entre as duas línguas, a sua mútua inteligibilidade, é uma potencial vantagem para promover a expansão tanto do português como do espanhol. Mas se do lado espanhol existe essa convicção, do lado português não é tão claro que assim seja, apesar de algumas declarações nesse sentido de responsáveis políticos e de a ideia estar subjacente no relatório Projeção Internacional do Espanhol e do Português: O potencial da proximidade linguística, publicado em 2020 e desenvolvido em parceria pelos Institutos Camões e Cervantes. O debate, porém, merece ser feito, e sem ficarmos constrangidos por preconceitos históricos. Não atuar de forma imaginativa significa aceitar a presença esmagadora do inglês, que vai conquistando áreas de influência a outras línguas, como aconteceu nas Filipinas com o espanhol e começa a acontecer em África com o francês.
Artigo o jornalista português Leonídio Paulo Ferreira, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 6 de novembro de 2023.