«(...) Os falantes nativos de uma das duas línguas cognatas — o português e o castelhano — ao tentarem falar a outra língua, não conseguem apagar a interferência (fonética, sintáctica e lexical) da sua língua materna. (...)»
No passado dia 29 de Junho, o Canal 2 da RTP transmitiu o documentário «D. Quixote de Cervantes — o Espírito de um Livro» (uma tradução arrevesada de «Cervantes y la Leyenda de Don Quijote»).
O programa contou com participação de várias personalidades. Günter Grass falou alemão, Mario Vargas Llosa e Felipe González falaram castelhano, Martín de Riquer e Carme Riera falaram catalão. José Saramago falou portunhol.
Portunhol é o termo usado para referir a linguagem híbrida falada nas comunidades de imigrantes e raianas — com elevada representatividade nas comunidades ibero-americanas nos EUA e nas populações da fronteira brasileira.
Os falantes nativos de uma das duas línguas cognatas — o português e o castelhano — ao tentarem falar a outra língua, não conseguem apagar a interferência (fonética, sintáctica e lexical) da sua língua materna. Há a crença de que a comunicação trans-línguas pode efectivamente ter lugar e ser legítima, contornando a aprendizagem formal da segunda língua (na escola, com método, com professor). O resultado é um discurso idiossincrático improvisado, inventado para facilitar o contacto entre pessoas que têm de se fazer entender no imediato, por razões económicas e profissionais.
O portunhol oferece dados muitíssimo interessantes à linguística. Mas seria igualmente interessante saber, do ponto de vista da sociologia ou da psicologia, porque é que Saramago falou portunhol no programa. E porque é que não houve legendas para a sua locução, já agora.
Em boa verdade, não se pode dizer que o nosso Nobel tenha falhado. Saramago tanto esteve em conformidade com o passado — Gil Vicente escrevia ora em português ora em castelhano — como esteve em consonância com o futuro — o linguista Steven Fischer prevê que o português venha a evoluir, daqui a uns séculos, para… portunhol.
Cf. O legado atual de José Saramago, contra o mito do «autor difícil»
*Artigo da professora Ana Martins, publicado no semanário Sol de 7 de Julho de 2007