« (...) Para entrar no dicionário, uma palavra "tem de adquirir uma certa notoriedade". E, hoje em dia, «notoriedade quer dizer ser muito usada na comunicação social ou por personalidades muito conhecidas ou muito prestigiadas»...»
Os momentos de crise ou de tensão política, económica e social são um terreno fértil para o surgimento de novas palavras, mesmo que não entrem logo nos dicionários. Algumas das mais recentes são covid, permacrise, meme e pós-verdade. Recorremos à língua para designarmos e entendermos o que desconhecemos - seja um produto financeiro, um fenómeno social ou uma doença. No Dia Mundial da Língua Portuguesa, vários especialistas explicam como os contextos em que vivemos afetam a forma como falamos.
A lista de "males" em cadeia, num curto espaço de tempo, é infindável. A uma pandemia seguiu-se a guerra na Ucrânia que, por sua vez, agravou a crise energética, fez disparar a inflação e as taxas de juro. Tudo isto ao mesmo tempo em que há um agravamento das alterações climáticas.
Este contexto "explosivo" fez com que, em 2022, o dicionário de língua inglesa Collins tenha escolhido permacrisis como palavra do ano. Esta nova entrada, que foi adotada para português como permacrise, resulta da junção de duas palavras – permanente e crise. Significa «período prolongado de insegurança e instabilidade». Ou seja, uma crise que não tem fim à vista.
Os períodos de maior tensão social, política e económica são normalmente muito ricos em termos linguísticos, explica Carla Marques, investigadora do Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA) da Universidade de Coimbra. Isso verifica-se porque «a língua ajuda o ser humano a compreender o que está a acontecer e a conseguir analisar e interpretar a realidade à sua volta». Afinal de contas, «para falar de alguma coisa, tenho de a perceber minimamente».
Também do ponto de vista linguístico, a pandemia foi um momento único. «Em dois anos assistimos a um dinamismo fantástico da língua, que às vezes precisamos de 50 anos para ver», revela a especialista em linguística na área da oralidade. Nessa altura, nasceram palavras novas que entraram no dia a dia. Desde logo, covid, que começou por ser um acrónimo, mas que rapidamente passou a ser um nome comum.
Não nos podemos esquecer que «uma língua é criada por uma comunidade e é um instrumento que serve a comunidade», acrescenta Margarita Correia, professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Por isso, «as palavras vão sempre espelhar a história dessa sociedade nas várias épocas».
Para entrar no dicionário, uma palavra «tem de adquirir uma certa notoriedade». E, hoje em dia, «notoriedade quer dizer ser muito usada na comunicação social ou por personalidades muito conhecidas ou muito prestigiadas».
A covid-19 não só entrou nas conversas do dia a dia como deu origem a outras novas palavras. Entre elas, covidário (local devidamente isolado e equipado num estabelecimento de saúde, onde são tratados doentes de covid-19) ou covidiota (que resulta da junção das palavras covid e idiota, e significa alguém que não respeita as regras de distanciamento social e de segurança, referentes à covid-19).
Tornaram-se corriqueiras palavras e expressões como coronavírus, teletrabalho, distanciamento social e desconfinar, que «surgiram para descrever novas realidades e situações criadas pelo contexto pandémico», refere Ana Salgado, presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua (ILLLP) da Academia das Ciências. De facto, acrescenta, «surgem, diariamente, palavras e expressões para designar novas realidades, novos conceitos». Ao vivermos na era digital e das tecnologias, com «os novos métodos de ensino e as redes sociais, tudo aquilo que está a acontecer à nossa volta impõe a necessidade de criar novas palavras e expressões».
Mas também acontece haver uma espécie de reciclagem de «outros vocábulos que, já existindo, ganham um novo destaque, como pandemia, confinamento, quarentena ou zaragatoa, que passaram a fazer parte do vocabulário de todos os portugueses», explica a especialista.
Sede de saber
Em abril, foi lançado o Dicionário da Língua Portuguesa, desenvolvido pela equipa do ILLLP da Academia das Ciências de Lisboa, que corresponde a uma versão digital parcialmente revista do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, que foi editado em 2001. Nessa nova versão digital «foram acrescentados mais de 30 mil verbetes relativamente à edição anterior (que tinha 69.426 entradas), alguns que não haviam sido registados e outros de entrada recente na língua», explica Ana Salgado. Entre os novos vocábulos estão negacionismo, sororidade, pós-verdade, veganismo, estagflação, idadismo, meme, identidade de género, agénero, não-binário e nómada digital.
Um fenómeno interessante nestes períodos de crise e de transformações sociais é que «as pessoas recorrem muito mais aos dicionários online para esclarecer dúvidas», revela a investigadora Carla Marques, que é também consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, site que chegou a receber centenas de perguntas por dia durante a pandemia. Por essa razão, «começámos a sentir necessidade de ter, num dos pontos das aberturas, uma explicação lexical» só para este tema da covid-19.
Zaragatoa foi uma das palavras que suscitou mais perguntas. Os utilizadores do site queriam saber o que significava, como se formou a palavra ou como se pronunciava. Esta palavra estranha, na verdade, já existia, mas estava "escondida" numa "zona cinzenta" do dicionário que só era usada por técnicos especializados, sobretudo na área da saúde. Mas que, neste contexto, «passou para o nosso léxico ativo».
As perguntas que chegaram nessa altura ao Ciberdúvidas estavam relacionadas, sobretudo, com decisões políticas. «Começaram a emergir muitas expressões como ‘calamidade pública’, ‘cerca sanitária’, ‘confinamento compulsivo’…, que já existiam, mas estavam num reduto e eram muito pouco usadas. Às vezes, até só eram usadas teoricamente, e, de repente, passaram para a rua», refere.
Essa busca pelo significado das palavras vai mudando conforme os momentos que estamos a viver. Nos anos 1980, as palavras que despertavam a atenção dos portugueses eram sida, glasnost ou perestroika. Em 2022, no dicionário online Priberam, as palavras mais pesquisadas estavam sobretudo ligadas ao contexto da guerra da Ucrânia. Desmilitarização, oligarca, estagflação, genocídio, polarização e prevaricação estavam no topo das pesquisas no ano passado.
As dúvidas surgem quase sempre no seguimento de palavras ou de expressões desconhecidas da maior parte da população e que são utilizadas nos discursos políticos e nos meios de comunicação social.
A palavra estagflação, por exemplo, «ao contrário do que muita gente pensa, não foi criada por um economista», explica Sandra Maximiano, economista comportamental. A expressão – que resulta da junção das palavras estagnação e inflação –, foi utilizada pela primeira vez em 1965 por Ian Macleod, um político inglês do Partido Conservador, que se referia a um período de estagnação da atividade económica ao mesmo tempo que se verificava uma subida da inflação. A expressão acabou por "pegar".
Mas há mais exemplos. Uma palavra que ficou no léxico comum desde a crise imobiliária de 2008 foi "bolha". «Hoje as pessoas já falam em bolhas nos mercados» com algum conhecimento. No entanto, a palavra "subprime", que tantas dores de cabeça nos deu nessa altura, voltou para a sombra dos dicionários especializados.
Olhando para a História, também percebemos que, «antes da adesão de Portugal à CEE, as palavras "dívida" e "défice" não eram comuns». Mas, hoje em dia, «talvez sejam das mais referidas nos media, nos discursos dos políticos e nos artigos de opinião».
Ficou célebre a frase proferida por Jorge Sampaio: «Há mais vida para além do défice». Os portugueses «são bons a usar este tipo de referências», diz Sandra Maximiano. «Usamos muitas metáforas, muitas figuras de estilo e isso ajuda a compreender» estes conceitos económicos.
Somos conservadores nas palavras
Nas crises económicas é muito comum importarmos palavras estrangeiras. Isto tem que ver com o discurso político em Portugal, que é "muito conservador". «Os anglo-saxónicos são mais pragmáticos. Os políticos portugueses não arriscam muito nas expressões que usam porque têm medo de destruir a língua de Camões», considera a professora do ISEG. «Temos uma sociedade muito crítica e muito avessa ao risco, até na linguagem».
É do inglês que importamos muitas das novas expressões que usamos, como "Brexit", "bailout" (resgate) ou "produtos financeiros tóxicos". Quando as novas palavras suscitam dúvidas, há uma procura pela informação e isso, considera, «acaba por ter um efeito positivo - aumenta a literacia». No fundo, «é uma aprendizagem à força».
Há palavras que já existem mas que, num determinado momento, ganham outro significado. Um exemplo disso é "geringonça", que originalmente significava aparelho ou mecanismo de construção complexa, mas que em 2016 foi utilizada de forma pejorativa por Paulo Portas para designar a coligação parlamentar de esquerda (PS, BE e PCP).
«Um político usou essa palavra num discurso que depois foi repetido pelos media, criou-se um efeito de contágio nas redes sociais e ficou», explica Sandra Maximiano.
Outro exemplo é "quarentena" que, na sua origem, significava 40 dias e que «com a covid-19 passou a ser sinónimo de confinamento», afirma a investigadora Carla Marques. «As pessoas diziam: estamos todos em quarentena. A palavra passou a cobrir um campo de significação lexical para o qual não estava preparada inicialmente».
"Troika" foi uma palavra com presença constante nas manchetes dos jornais. É originalmente uma palavra russa que significa um carro puxado por três cavalos, explica Margarita Correia, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Com o pedido de resgate, passou a representar as três entidades credoras de Portugal – FMI, BCE e Comissão Europeia. Mas entretanto já "engordou" a sua significação, acrescenta Carla Marques. «Usamos a expressão ‘vem aí uma troika’ quando queremos dizer que alguém vai controlar os nossos salários e reduzir o nosso rendimento»
A professora do ISEG Sandra Maximiano recorda que antes da crise financeira o termo "austeridade" não se usava muito em política económica. No entanto, ficou. «Hoje em dia questiona-se se uma política é austera ou não». Há uma maior tendência para uma palavra "pegar" quanto mais utilizada for por pessoas influentes. Quando assim acontece, ela é replicada nos media e ganha força.
Os ciclos políticos também suscitam novos vocábulos. Sobretudo ligados aos nomes dos líderes. É o caso de palavras terminadas em "ismo" como cavaquismo ou em "ista" como sampaísta.
A palavra "Cavaquistão" foi uma criação do jornal Independente, «que era um semanário com uma criatividade linguística absolutamente incrível», recorda Margarita Correia. Na altura, tinha caído a antiga União Soviética e «estavam a aparecer novos países todos acabados em "istão"». O jornal decidiu designar dessa forma «aquela zona de Viseu onde o PSD era absolutamente dominante e ganhava sempre as eleições, na altura dos governos Cavaco Silva».
Há palavras que entram nos dicionários e há palavras que saem ou que sofrem alterações nas suas definições. A verdade é que «muitas vezes o público também se manifesta contra as palavras que estão no dicionário», afirma a especialista em lexicologia Margarita Correia, que recorda um caso no Brasil.
Há uns anos, existiu «uma grande polémica relativamente às definições que o dicionário Houaiss online tinha para a palavra "cigano" - quer como adjetivo, quer como substantivo -, porque eram muito depreciativas». A pressão social fez com que os proprietários acabassem por alterar essa entrada do dicionário.
Na verdade, «a língua é um organismo vivo, que muda e evolui ao longo do tempo, adaptando-se e transformando-se para dar resposta às necessidades dos seus falantes», conclui a lexicógrafa Ana Salgado. Por isso, sempre que há algo impactante no mundo que nos rodeia, isso também a afeta.
Texto da jornalista Filipa Lino, transcrito com a devida vénia, do diário Jornal de Negócios de 5/04/2023.