«[...] [O] comentário mais frequente quando alguém se pronuncia sobre a qualidade de um restaurante é "come-se". [...]»
No fosso entre aquilo que os portugueses dizem e aquilo que se escreve, encontra-se muita coisa interessante: toda uma arqueologia de atitudes e de pendores que um dia ainda será mais difícil de descobrir do que é hoje.
Por cima dessas camadas espessas e compactadas, onde se esconde o que realmente dizemos e a maneira como realmente falamos uns com os outros, quando não está ninguém a ouvir (ou a gravar), haverá um campo carnavalesco de detritos plásticos e restos de conversas: o lixo das redes, preservado para sempre.
Vejam-se os restaurantes e a maneira como se escreve acerca deles: haverá alguma ligação à maneira como falamos dos sítios onde se come? Dou um exemplo.
De longe, o comentário mais frequente quando alguém se pronuncia sobre a qualidade de um restaurante é «come-se». Alguma vez leu «come-se» num comentário sobre um restaurante? Pois, eu também não.
«Come-se» não é apenas comestível: é bastante melhor do que isso. «Come-se» é um bocadinho acima de “só comi porque estava com fome”. Mas é abaixo de “não é nada mau”.
«Come-se» é pior ou melhor do que «deixa-se comer»? É preciso fazer o desconto do suplemento irónico que muitas vezes se associa ao «deixa-se comer». Em casos extremos «deixa-se comer» pode ser o maior dos elogios.
Se eu fosse fazer um guia de restaurantes, bastar-me-iam seis classificações. Quatro são fáceis: o come-se bem e o come-se muito bem de um lado e o come-se mal e come-se muito mal do outro.
Mas é no meio que está a riqueza interpretativa: é o «come-se» sem mais nada e o «come-se benzinho».
O «benzinho» não é tão bom como «bem» porque comer bem é do melhor que pode haver.
No Norte, por exemplo, nem sequer se reconhece o comer «muito bem», sendo considerado uma afectação sulista.
Crónica incluída no jornal Público em 5 de abril de 2022, escrita segundo a norma ortográfica de 1945.