«Bolsonaro pode ter sido chamado de "pedófilo" e "canibal" ao longo da campanha – e de "miliciano", "genocida", "palhaço Bozo" ou, simplesmente, "o inominável" nos últimos anos – mas o rival Lula não fica atrás em alcunhas pejorativas.»
Do «imbroxável», de Bolsonaro, ao «capiau», de Lula, passando pelos já mais batidos «tchutchuca do centrão» e «picolé de chuchu», as eleições de 2022 no Brasil foram fiéis ao caldo cultural de um país que junta o colorido, o exótico e o tropical à língua portuguesa. No dia da escolha entre Jair Bolsonaro e Lula da Silva para a presidência, eis um roteiro da campanha por expressões velhas e novas, umas mais, outras menos percetíveis aos ouvidos europeus.
Imbroxável. A campanha eleitoral começou a 16 de agosto mas foi o discurso de Bolsonaro a 7 de setembro, dia em que se celebrava 200 anos de independência do Brasil, a dar o pontapé de saída. Com Marcelo Rebelo de Sousa e o coração embalsamado de Dom Pedro por perto e a primeira-dama, Michelle, ao lado, o presidente do Brasil puxou o cântico «imbroxável, imbroxável», isto é, homem que nunca falha no ato sexual. O episódio lançou discussão etimológica sobre se é «imbroxável» ou «imbrochável» — os linguistas preferem a primeira opção.
Cf. Imbrochável ou imbroxável? Entenda o significado da fala de Bolsonaro + Imbroxável é o menos + O que é imbroxável? Coro puxado por Bolsonaro levanta discussão sobre disfunção erétil
Tchutchuca do centrão. Três semanas antes, Bolsonaro mandou parar o carro onde seguia depois de ouvir um youtuber chamá-lo de «tchutchuca do centrão». Tchutchuca é o nome de um funk que aborda a relação de um Tigrão – homem dominador – com uma Tchutchuca – mulher submissa. O termo entrou na política quando Zeca Dirceu, do PT, acusou Paulo Guedes, ministro da Economia, de ser «um tigrão» com os necessitados e «uma tchutchuca com os privilegiados». O "centrão" são os cerca de 200 deputados que apoiam qualquer governo em troca de dinheiro. Bolsonaro prometeu em campanha combatê-lo, como um tigrão, mas acabou, qual tchutchuca, entregando-lhe um naco generoso do orçamento, o escândalo do Bolsolão, para que o seu governo, digamos, não broxasse no parlamento.
Bolsolão. "Bolsolão", ou orçamento secreto como lhe chamou o Estado de São Paulo, o sisudo jornal que o revelou, é o nome daquele a que Simone Tebet, terceira classificada na primeira volta, chamou de «maior escândalo da história no planeta Terra». Para se precaver de eventual impeachment, Bolsonaro destinou cerca de 3 mil milhões de euros a parlamentares. Estes depois usaram-nos em projetos como, por exemplo, a compra de tratores sobrefaturados em 259% (razão pela qual o esquema é também chamado de "tratoraço") e a extração de 540 mil dentes numa cidade, Pedreira, com 39 mil habitantes. «Significa ter tirado 14 dentes de cada cidadão, inclusive de bebé sem dente», completou Tebet.
Cf. Pequena Enciclopédia do Bolsonarismo
Datapovo. Por verem Lula à frente das sondagens mas conseguirem juntar multidões consideráveis em manifestações pró-presidente, os bolsonaristas inventaram o termo "datapovo" — «eles têm o Datafolha, nós temos o "datapovo»". O Datafolha, principal instituto de sondagens do país, é propriedade do grupo do jornal Folha de S. Paulo, que a direita chama «Foice de S. Paulo», por conotá-lo com a esquerda (e a esquerda chama de «Falha de S. Paulo», por conotá-lo com a direita).
Picolé de chuchu. O termo alude à suposta falta de carisma de Geraldo Alckmin, ex-rival mas hoje candidato a vice de Lula. Os picolés, gelados de fruta, querem-se doces. O chuchu é considerado o mais sensaborão dos legumes. Alckmin não se abate: segundo ele, o prato do ano no Brasil será «lula com chuchu».
Voto BBBBB. Começou por haver a bancada parlamentar BBB, de Bala (deputados polícias), Boi (deputados pecuaristas) e Bíblia (deputados evangélicos), todos eleitores tradicionais de Bolsonaro, mas agora pesquisadores acrescentaram mais dois B. De «Bolsonarismo Raiz» (ou «boçalidade»), para caracterizar o eleitor orgulhosamente rico e ignorante, e de «branco», porque onde há mais brancos, cresce a probabilidade de Bolsonaro ser o mais votado.
Capiau. O termo, equivalente a caipira, é usado para definir a população rural do estado de São Paulo (e não só). Lula usou-o no programa do Ratinho (um dos ícones da trash TV brasileira e pai do reeleito governador do Paraná, Ratinho Júnior) para classificar Bolsonaro, natural da região rural paulista, como bronco. Foi considerado um tiro no pé do candidato que tenta, a todo o custo, conquistar votos de... capiaus. Mas em matéria de tiros do pé, Bolsonaro é invencível: associou as votações recorde de Lula no nordeste ao analfabetismo na região.
Cabra da peste. Depois da gafe, Bolsonaro foi ao nordeste dizer que não, que ele próprio é um «cabra da peste» (um valentão, na gíria nordestina), para amenizar.
Pintou um clima. A expressão é conhecida, também em Portugal, por significar «química», de cariz sexual, entre duas pessoas. Bolsonaro usou-a referindo-se a menores de idade: «Eu estava em Brasília [...] e olhei umas menininhas. Três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas [...]. Pintou um clima, voltei. Posso entrar na sua casa? Entrei». A repercussão colossal obrigou o candidato a fazer uma live de madrugada para se justificar.
Yanomani. Antes do clima que pintou entre Bolsonaro, 67 anos, e as adolescentes, foi uma entrevista antiga ao The New York Times, em que o então deputado admitia estar disposto a comer o cadáver de um índio cozinhado, a marcar a campanha. «Isso é um vídeo de há 30 anos numa reserva indígena yanomani, onde o indígena que morria, no caso jovem, no ritual, tinha o corpo cozinhado. Me rotularam de canibal mas não tem cabimento uma questão dessas daí».
Pinguço. Bolsonaro pode ter sido chamado de «pedófilo» e «canibal» ao longo da campanha – e de «miliciano», «genocida», «palhaço Bozo» ou, simplesmente, «o inominável» nos últimos anos – mas o rival Lula não fica atrás em alcunhas pejorativas. Os rivais chamam-lhe «descondenado» e «ex-presidiário», por ter estado na prisão, de «nove dedos», por ter perdido o mindinho num acidente, e de «pinguço», que vem de pinga, sinónimo de cachaça. Por falar em The New York Times, um correspondente do jornal no Brasil que sugeriu nos anos 2000 que Lula bebia demais foi hostilizado pelo governo.
Candidato padre. O diálogo entre os candidatos Soraya Thronicke e Padre Kelmon em debate na Globo ficou na história. «A minha pergunta é para o Padre Kelson!», disse ela. «Kelmon», corrigiu ele. «Kelvin?», arriscou ela. «Kelmon», repetiu ele. «Bom, a minha pergunta é para o candidato padre», rematou ela. Pensou-se que o protagonismo do «candidato padre», um fã de Bolsonaro que teve 0,07% dos votos, terminasse aí. Mas não (leia a próxima entrada).
Bob Jeff. É o diminutivo de Roberto Jefferson, deputado bolsonarista que cumpriu, até dia 22/10, prisão domiciliar por ameaças à democracia. Depois de nesse dia chamar a uma das juízas do Supremo de «prostituta arrombada», o Tribunal Eleitoral mandou prendê-lo numa cadeia, dia 23. Os polícias, no entanto, foram recebidos por Jeff com 50 tiros e uma granada. Ele só se rendeu graças à intermediação de um amigo, o «candidato padre».
Marajó. A Ilha do Marajó, no estado do Pará, norte do Brasil, entrou no mapa eleitoral ao ser citada por Damares Alves, ex-ministra da Mulher de Bolsonaro e futura senadora, como um ponto de abuso infantil. A uma plateia numa igreja evangélica, que incluía crianças, Damares disse, sem apresentar provas, que no Marajó arrancam os dentes a crianças, para facilitar sexo oral, e alimentam-nas de comida pastosa, para facilitar o sexo anal. Pares senadores convocaram Damares para se explicar – defendem que se as alegações doentias forem infundadas, ela incorre em crime eleitoral por tumultuar a eleição; se forem verdadeiras, ela incorre em crime de prevaricação por não as ter denunciado às autoridades.
Assédio eleitoral. Em Minas Gerais, considerado um decisivo swing state, já há mais de 300 investigações de crime de «assédio eleitoral» – patrões que prometem folgas, 14.º mês e churrascos aos empregados se eles votarem num dado candidato ou ameaçam com despedimento coletivo caso esse candidato perca. Em 90% dos casos, o assédio é de bolsonaristas, diz o Ministério do Trabalho local.
Lulema. Em Minas Gerais, e não só, os «votos casados» são uma tradição. Em 2010, houve o voto Lulécio (em Lula para presidente e em Aécio Neves para governador mineiro, embora fossem de partidos rivais). Na primeira volta, dia 2/10, muitos mineiros votaram Lulema, Lula para presidente e Romeu Zema para governador. Sucede que agora Zema, já eleito, apoia Bolsonaro, o que pode confundir o eleitor.
Paris. A capital francesa entrou na história da eleição de 2018 — Ciro Gomes, depois de perder o direito a disputar a segunda volta com Bolsonaro para Fernando Haddad, em vez de fazer campanha ao lado do candidato do PT, foi para Paris passar férias. Em 2022, disse acompanhar a decisão do seu partido, o PDT, no apoio a Lula na segunda volta, mas depois desapareceu. «Ciro em Paris outra vez», virou hashtag.
Ketchup na pizza. Por falar em Haddad, ele agora concorre ao governo de São Paulo contra Tarcísio de Freitas, ex-ministro de Bolsonaro. Tarcísio até está na frente das sondagens mas é visto com desconfiança por ser... carioca. «Vocês querem uma lei em São Paulo que obrigue a pôr ketchup na pizza?», brincam eleitores nas redes sociais – os naturais do Rio de Janeiro têm esse hábito alimentar, considerado uma heresia pelos paulistas.
Carluxo. O segundo filho de Bolsonaro, mais conhecido pela alcunha, Carluxo, do que pelo nome, Carlos, é investigado pelo Tribunal Eleitoral por liderar um «ecossistema da desinformação» – isto é, espalhar mentiras numa escala industrial como a de que Lula, eleito, iria instituir casas de banho unissexo no país.
Lula lá. Em 1989, centenas de artistas reuniram-se pela primeira vez a cantar Lula Lá (na verdade, a música chama-se Sem Medo de Ser Feliz). Trinta e três anos depois, o tema foi recuperado – Chico Buarque é um, entre muitos, que cantou Lula Lá então e agora.
Radiogate. A campanha Bolsonaro, que já contestou as urnas eletrónicas e os institutos de sondagem, protesta agora contra um suposto boicote a inserções eleitorais do seu jingle em rádios, chamado de radiogate. O Tribunal Eleitoral rejeitou a queixa e apontou eventual «crime eleitoral» do campo bolsonarista por tumultuar a eleição. Estações citadas dizem que foi a campanha de Bolsonaro que se esqueceu de enviar as inserções.
Cf. Glossário Eleitoral + Entenda o significado de termos usados em época de eleição
Artigo da autoria do correspondente do Diário de Notícias em São Paulo, João Almeida Moreira, publicado em 30 de outubro de 2022.