« (...) Existe quem compreende que as línguas são como os filhos (parimo-los e criamo-los, mas o seu futuro não nos pertence), que elas pertencem a quem as escolhe e fala. Os partidários desta visão acreditam numa língua pluricêntrica, que, para se manter una, carece de gestão partilhada, provavelmente supranacional, com negociações e acordos constantes. Esta visão é de longe a mais difícil de executar, a mais exigente, a que requer maior investimento e de futuro menos previsível. (...)»
[Seguem-se, no fim, ligações para quatro outros textos publicados na imprensa portuguesa relativos ao Dia Mundial da Lingua da Língua Portuguesa (2021).]
Celebra-se [a 5 de maio de 2021] o Dia Mundial da Língua Portuguesa. São muitos os eventos agendados, os discursos e palavras bonitas. Temos muitas razões para celebrar. Nos últimos anos, a língua portuguesa cresceu e percorreu caminhos ainda há pouco inimagináveis. Em Portugal, porém, nem todos partilham deste entusiasmo.
Escolha pressupõe esclarecimento e, por isso, vale a pena descrever três visões contemporâneas sobre a língua portuguesa.
1. Há quem ache que o português é só dos portugueses e apenas Portugal tem autoridade para mandar nele. Nos outros países falam-se línguas "bastardas", "impuras", corrompidas pelo uso e as misturas que foram fazendo os falantes de lá. Os que professam esta visão acreditam que a língua portuguesa está sempre em perigo e carece de políticas linguísticas unilaterais, nacionalistas, da instauração de espécie de "cerca sanitária linguística". A gestão linguística é exequível, neste contexto, fácil e barata, sem necessidade de negociações e acordos. Os falantes seriam cada vez menos, sim, mas "orgulhosamente sós" e felizes. Talvez até se mantivesse a "pureza" linguística com o devido isolamento do resto mundo – afinal, talvez as línguas dos países que praticam isolacionismo político se mantenham incólumes à conspurcação.
2. Existe quem ache que o português são dois: o que se fala no Brasil (que já nem português é) e a «variedade euro-afro-asiática e oceânica», codificada e regulada por Portugal, cuja norma é acriticamente seguida pelos restantes países, por falta de massa crítica e pensamento linguístico, mas também por apreço pelo "colonialismo fofinho". Uma variante desta visão é a que "parece colonialista mas não é", pois até reconhece características legítimas da variedade de cada país, desde que reconhecidas a partir de Lisboa e estanques, usadas num espaço geográfico determinado (e muito giras, lá longe). Os defensores desta visão acreditam que vivem na primeira metade do século XX, daí a crença na sua exequibilidade, e que Portugal tem o dever de defender e proteger a língua, "a solo". A gestão não implicaria negociações, acordos ou partilha (só "abraços fraternos" e paternalismo q. b.), sendo até fácil e barata se...
3. Existe quem compreende que as línguas são como os filhos (parimo-los e criamo-los, mas o seu futuro não nos pertence), que elas pertencem a quem as escolhe e fala. Os partidários desta visão acreditam numa língua pluricêntrica, que, para se manter una, carece de gestão partilhada, provavelmente supranacional, com negociações e acordos constantes. Esta visão é de longe a mais difícil de executar, a mais exigente, a que requer maior investimento e de futuro menos previsível. Contudo, o exponencial crescimento de falantes nativos de português, o seu progressivo potencial económico e internacionalização, aliados à descrição e codificação das variedades nacionais do português falado nos vários países, são imparáveis – e. g. Moçambique, além de descrições linguísticas abundantes, produziu o seu Vocabulário Ortográfico Moçambicano da Língua Portuguesa (VOMOLP) em 2017 e está a elaborar o primeiro Dicionário do Português de Moçambique, o DiPoMo.
Felizmente, vivemos num país livre, onde se pode falar destes assuntos, outrora reservados a "iluminados". Como cidadãos, importa ponderar implicações e rácios custo-benefício. Aos políticos, por nós eleitos, compete a escolha do melhor caminho, escolha desejavelmente baseada em conhecimento (e não em mitos ou desejos), visando o bem comum.
Cf. Uma língua do mundo, para o mundo + Português. Quanto vale a língua mais falada no hemisfério sul? + «Até Gulliver, no princípio do século XVIII, se 'desenrascava' em português» + A língua entranhou-se tanto que já sonham em português: seis histórias de cidadãos estrangeiros a viver em Portugal
Artigo da autora publicado no Diário de Notícias em 3 de maio de 2021.