« (...) O estudo do árabe revela-se cada vez mais fundamental para o aprofundamento da língua portuguesa, nosso idioma comum, pois, é bom relembrar, o árabe é, a seguir ao latim, a língua que mais influenciou o idioma com que nos entendemos. (...)»
Como bom ateu que sou, começo esta minha palestra evocando em alto e bom som: Alahu akbar, isto é, Deus é Grande.
Sim, devo dizer Deus em português e nunca Alá, que é uma das muitas formas que os homens, nos seus diferentes idiomas, usam para se referirem a um ente que ninguém conhece verdadeiramente, mas que vai servindo para temperar de algum modo os naturais instintos humanos que são em vários aspectos a predação.
O vocábulo arábico AllaH quer dizer «Deus, o Deus único», abrangendo os 99 epítetos com que os muçulmanos adjetivam a divindade. Trata-se da forma enfática do vulgar ‘llaH, ligada ao radical alaHa, que quer dizer «adorar».
E não esquecer, os melhores teólogos que conheço são ateus, sim, ateus, porque são estes os mais imparciais para dirimirem sobre os resultados da fé especulativa.
Já que começámos com um vocábulo árabe, continuemos por aqui. A nossa laranja doce é um vocábulo importado directamente do árabe, que ali quer dizer «laranja amarga ou brava». Tendo trazido da China a tecnologia para a adocicar, os árabes homenagearam-nos de certa forma dando ao novo produto o nome Portukale, com que passou a ser ali conhecida.
Ainda neste campo vale a pena lembrar, que tendo sido os portugueses os primeiros a trazer as tangerinas, que primeiro foram experimentadas em Tânger, daí o nome, os franceses homenagearam-nos também de certa forma dando-lhe o nome de mandarinas, palavra que evoca o vocábulo português que os nossos marinheiros deram aos chineses que mandavam no Celeste Império.
Lembro aqui um episódio passado em Casablanca, quando ali me desloquei por ocasião das primeiras eleições semi-democráticas realizadas em Marrocos. Tendo a nossa comitiva chegado ao estádio principal onde se realizava um comício, uma colega minha do Diário de Notícias, a Lumena Raposo, ao ouvir proclamar Portukale, Portukale, pergunta admirada como é que sabiam que nós tínhamos chegado. Esclareci-a, pois percebi logo o que se passava. Era o comício dos sociais-democratas locais e portanto vangloriavam o seu partido, os Laranjinhas. Em todo o mundo árabe, do Magreb à Pérsia, Portugala é o nome por que conhecem a laranja.
Esta é uma história de encontros e permutas em vários sentidos. Em Marrocos sempre houve muitas laranjas bravas, em árabe leranje, mas foram os portugueses que para lá levaram as laranjas doces, que trouxeram da China, pelo que, em homenagem à terra que lhas levaram, assim perpetuaram o seu nome.
A proximidade da língua portuguesa com o árabe não se fica por aqui, como todos sabem.
Nesse mesmo dia, fomos parar a outro comício, nos arredores daquela cidade. Desta vez era dos socialistas locais. Não percebíamos nada, claro, do que se ia dizendo, mas também não era muito importante. Mas a certa altura, os assistentes levantam-se e com o polegar para baixo, gritavam: «Zero! Zero! Zero!» Parecia mesmo que estávamos a assistir a qualquer episódio em Luanda ou em Lisboa.
Perguntámos ao nosso assistente: «Que se passa?»
«Nada de especial. O orador perguntou o que é que o governo tinha feito pelo povo e eles estão a dizer Zero, isto é, nada».
Não era necessário fazer nova pergunta. Na verdade, de algum modo foram os árabes que nos trouxeram o Zero.
Há dez anos foi publicado pela Imprensa Nacional de Portugal um Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, da autoria de Adalberto Alves, que aos estudos da cultura árabe em Portugal tem dedicado um grande labor, sendo o livro O meu coração é árabe, um dos seus expoentes.
O aparecimento deste dicionário veio preencher uma falta que há muito se fazia sentir, pois, ao contrário da Espanha, onde a cultura árabe tem honras preferenciais e estratégicas, e do Brasil, onde há uma grande percentagem de população de origem árabe, em Portugal só agora é que se assiste a um recrudescer de estudos árabes, por circunstâncias que têm a ver sobretudo com a expansão da população desta origem na Europa, onde se propagam atualmente alguns movimentos nacionalistas e racistas que não auguram nada de bom para o próximo futuro.
Na verdade, o estudo do árabe revela-se cada vez mais fundamental para o aprofundamento da língua portuguesa, nosso idioma comum, pois, é bom relembrar, o árabe é, a seguir ao latim, a língua que mais influenciou o idioma com que nos entendemos.
Os especialistas estão de acordo em que a língua árabe deixou na península ibérica mais de 4000 arabismos, alguns em desuso mas outros de uso frequente, explicando-se este número elevado de palavras pela necessidade de nomear objetos e tarefas trazidos pelos árabes e pelo prestígio que então tinha uma cultura rica em avanço técnico e cultura. Lembremo-nos, por exemplo de alguns vocábulos portugueses que se foram incorporando nas línguas nacionais de Angola e Moçambique, integrando-se logicamente nas línguas de síntese como o lingala e o suaíli, como pão e muitos outros, designadamente porque foram os portugueses que os introduziram pela primeira vez naqueles países.
Muitos vocábulos de origem árabe no português, que a etnógrafa e linguista Carolina Michaёlis calcula sejam mais de um milhar, reconhecem-se porque começam por al ou a, já que aglutinavam o artigo junto com o nome que se tomava emprestado ao árabe.
Assim, temos, por exemplo, açúcar, alfândega, almirante, almanaque, alface, álgebra, arroba, almude, alqueire, azeite, azeitona, alguidar, aldeia, xadrez, bairro, alcaide,álcool, medina, beringela, Guadiana, Guadalquivir, Odemira (e outros rios derivados de guad, rio, ou ode e ainda ued, tarifa, armazém, tabique, fulano, laranja, alface, almofada, alecrim, etc.).
A título de curiosidade, refiram-se alguns topónimos portugueses de origem árabe com indicação do seu significado: Albufeira (Albuhaira, ou a pequena barragem), Alcácer (Alqassr, ou o castelo), Alcântara (a ponte), Alfama (Alhammam, ou os banhos), Algarve (Algharb, ou o Ocidente), Almada (Almadin, ou a mina), Alvalade (Albalad, ou o campo), Atalaia (lugar alto de onde se exerce vigilância), Cuba (pequena torre), Fátima (nome da filha do Profeta Muhammad), Massamá (maktamá, ou nascente de água), Queluz (vale da amendoeira), etc.
Já agora vale a pena lembrar que a palavra saloio, com que os alfacinhas lisboetas pretendem minorizar os habitantes dos arredores da capital que lhes produzem os produtos hortícolas, não tem nada a ver com isso, pois saloio vem do árabe sahraui, que quer dizer habitante do deserto, tendo a palavra Sahra, por sua vez, como significado simplesmente isso, o deserto. E é igualmente interessante recordar que a palavra granada[1] é igualmente de origem árabe, significando primitivamente romã. Como os primeiros explosivos tinham a forma de uma romã, foi por isso que se denominaram de granadas, e os seus operantes ficaram a ser chamados de granadeiros.
Entre alguns exemplos de termos que se referem à organização do Estado e que dão bem uma ideia do que foi a influência do mundo árabe na Península Ibérica, está a palavra aduana, do árabe ad-diwan, oriunda do persa diwan, que significava registo, oficina, escritório, que ficou viva na língua portuguesa até hoje. Alvará é também uma palavra tipicamente árabe e documentada na língua desde 1328. Significa «o texto que autoriza», e, até hoje, não teve substituto. Continua presente na língua, assim como a palavra alcavala, hoje quase em desuso, que é típica de administração: era uma distribuição de adjudicação, num sistema ainda comunitário (a terra nem sempre foi propriedade privada; então, por isso mesmo, o mundo árabe não previu nenhuma reforma agrária). Não foi necessária! Alcavala está representada em português em duas gerações, aparece também como gabela, esta já bem tardia no português, porque foi palavra italiana. Alcavala, além de ser adjudicação de um pedaço de terra, era também contribuição que se fazia pela detenção da terra, espécie de aluguel.
Como disse o linguista Cândido de Figueiredo, no seu livro Problemas de Linguagem (Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945), «depois dos elementos latinos, foram os árabes os que mais contribuíram para a formação do português». O que é corroborado por António Houaiss, autor de um dos mais prestigiados dicionários da língua portuguesa, que salienta: «Num total de três mil a três mil e duzentas palavras do português primitivo, há, no mínimo, oitocentas palavras de origem árabe. Numa estatística verbal, contemporânea de então, é impressionante o acervo de palavras árabes que existiam vivas no português. Representam algo em torno de 25% do vocabulário da língua portuguesa primitiva.»
O caso do café e dos cafés
De origem árabe também é o café, do árabe qahwa, ou ainda de kahwah ou cahue, que significam todas vinho, devido à importância que a planta passou a ter para o mundo árabe. A classificação Coffea arabica foi dada pelo naturalista Lineu, o tal das coisas vulgares, mas há muitas outras variedades de café, das quais a mais conhecida em Angola é a Robusta.
Uma lenda muito difundida mas pouco credível por ser demasiado surrealista, situa a origem do café numa estória tão fantasiosa como poética. Um pastor andava a guardar as suas ovelhas e deixou-se dormir tempo demais, pelo que quando acordou a maior parte delas tinha fugido. Arrependido, jurou que nunca mais tal viria a acontecer, pelo que arrancou as sobrancelhas e lançou-as para o chão, nascendo delas a primeira planta do que se viria a chamar cafeeiro. Teria sido esta a origem da semente da planta do café, cujas propriedades principais são exatamente fazer despertar os mais sonolentos e manter acordados os mais resistentes ao sono.
A lenda sobre a descoberta do café provém da Arábia. Conta-se que um pastor, de nome Kaldi, observou que as suas cabras, depois de terem comido os bagos de café, estavam com mais brio que o costume; pareciam mais ativas e contentes. Kaldi também quis provar os bagos dessa misteriosa planta e, imediatamente, foi invadido por uma euforia e, nessa noite, dormiu menos que o costume. Kaldi compartilhou a sua experiência com um dos seus vizinhos, um fervoroso seguidor do Corão e este obteve os mesmos resultados que Kaldi, tendo recebido de Maomé o segredo para preparar o café a partir dos grãos secos.
Parece que as tribos africanas, que conheciam o café desde a Antiguidade, moíam os seus grãos e faziam uma pasta utilizada para alimentar os animais e aumentar as forças dos guerreiros. O seu cultivo estendeu-se primeiro pela Arábia, introduzido provavelmente por prisioneiros de guerra, onde se popularizou aproveitando a lei seca por parte do Islão. O Iémen foi um centro de cultivo importante, de onde se propagou pelo resto do Mundo Árabe, tendo sido o porto de Moka o principal centro de exportação do produto, dando origem a uma das principais variedades de café, que leva este mesmo nome, Moka, e que originou também uma forma original de o fazer, mais conhecido como café turco, que consiste em deitar café moído em água a ferver, adicionando-se uma brasa ardente, que fará assentar o pó de café e dar-lhe um gosto original.
O café teve inimigos mesmo entre os árabes, que consideravam as suas propriedades contrárias às leis do profeta Maomé. No entanto, o café logo venceu essas resistências e até os doutores maometanos aderiram à bebida para favorecer a digestão, alegrar o espírito e afastar o sono, segundo os escritores da época.
Igualmente como substantivo, a palavra café tem desde há muito outra valência: é o estabelecimento comercial onde se serve em pequenas chávenas ou xícaras, que tanto em Angola como em Portugal tomou a designação de bica, iniciais do cartaz que a Brasileira do Chiado utilizou nos primeiros anos do século XX para o divulgar: «Beba Isto Com Açúcar»[2].
Ainda agora há estabelecimentos destes em muitas cidades europeias e no Brasil, que continuam a ser lugares de convívio e de tertúlias, algumas com mais de 100 anos. Em Angola também houve cafés deste tipo, sendo um dos mais conhecidos o Café Monte Carlo, perto da antiga rua Silva Porto, onde se reuniu durante muitos anos o grupo do Luandino Vieira, com o António Jacinto, o António Cardoso e outros nacionalistas angolanos, como o Jonuel Gonçalves, o Adolfo Maria e muitos outros.
Em Lisboa, para além da Brasileira, que introduziu a bica, e do Montecarlo e do Gelo, celebrados pelas suas tertúlias culturais e políticas, também houve outros cafés famosos, nomeadamente o Nicola, o Leão de Ouro, o Palladium e os Martinhos. E não esquecer os três mais célebres do Porto, o Majestic, ainda a fazer jus à sua fama, e o Palladium e o Java, infelizmente já extintos.
Como realçava o grande jornalista e historiador Roby Amorim, no seu livro Da Mão à Boca, «Que seria da língua portuguesa sem o acervo de dezenas de termos que nos foram legados, por aquilo que se costuma designar como invasão árabe e que tem muito pouco de invasão autêntica?»
«E, principalmente, que seria da cozinha portuguesa sem essa, agora real, invasão de pratos, condimentos e técnicas que, para nosso regalo, atravessaram as Portas de Hércules e por cá ficaram até aos nossos dias?»
Da agricultura à gastronomia
Efectivamente, das 300 palavras portuguesas que os gramáticos concordam terem origem árabe (ou admitidas no árabe, como as berberes), a grande maioria dizem diretamente respeito à agricultura, aos pesos e às medidas, à cozinha, à confeitaria, e perduram com força insistente, a demonstrar a boa aceitação e implantação que tiveram entre nós.
Da acelga ao xarope, passando pela fatia, pela maquia, a azenha e a récua, do arrátel e da arroba até ao arrais, da almôndega à alcachofra, almude, o alqueire. Um mundo rural e culinário bem diferente do que tinha sido construído pelos romanos e mantido, com uma maior boçalidade, pelos bárbaros do Norte, que se lhe seguiram.
Realmente, como afirma Adalberto Alves, historiador arabista, no seu Dicionário de Arabismos na Língua Portuguesa, é evidente que a influência da língua árabe, para além dos seus aspectos evidentes ou visíveis, ou seja, do léxico árabe transposto para o português de forma direta, deve considerar todos aqueles que chegam ao português de forma menos clara, ou «encapotada», através da tradução de textos árabes por religiosos cristãos, cuja origem, « por preconceito religioso (…) a hierarquia da Igreja queria apagar» (ALVES, 2013, pág. 17).
Alves rotula esses termos «algo jocosamente» de arabim ou arabrego. «A praga de usar nomes e verbos árabes sem reconhecê-los como tal, conseguiu vingar, até agora (…) nos dicionários europeus» (ALVES, 2013, pág. 19).
Sendo assim, a extensão da influência do árabe no português, que a maior parte dos autores resumem a cerca de 1000 substantivos, deve ser consideravelmente alargada, não só no seu número, que segundo Adalberto Alves é de 18 073 termos, como ao nível gramatical, já que inclui não só substantivos, como adjectivos, verbos, pronomes, artigos e interjeições (ALVES, 2013, pág. 23).
Enorme foi a contribuição dos árabes para o vocabulário português e espanhol durante sua permanência de sete séculos na Península Ibérica. O detalhe curioso é que esse al fixado no início das palavras era, na verdade, o artigo definido da língua árabe. Alquimia, por exemplo, quer dizer «a química». Na língua de origem, o al acompanha todo e qualquer substantivo, não importa se masculino ou feminino, singular ou plural. Além disso, vem sempre colado à palavra a que se refere – não é possível inserir entre ele e o substantivo qualquer outro vocábulo, como fazemos em nosso idioma: «o teu livro», «o único livro», etc. Outro facto marcante é que esse artigo aparece também em palavras da língua portuguesa que não começam com al. Isso porque a sua segunda letra, o “l”, pode ser alterada para que o seu som se harmonize com a consoante a seguir. Foi assim que ar-ruzz virou arroz e az-zayt, azeite.
Continuando a incursão árabe, vale a pena lembrarmos que a palavra Algarve vem directamente do árabe al-garb, «oeste, poente, ocidente», usada outrora para designar a parte ocidental da Península Ibérica. Já agora, embora seja conhecido internacionalmente como Reino de Marrocos, por causa da cidade de Marraquexe, a zona mais variegada do país, o nome nacional deste país é exactamente Almagrebe.
Prosseguindo em Marrocos vale a pena dizer que a sua capital, embora sendo conhecida no chamado Ocidente como Rabat, em árabe continua a ser Ribat, donde a nossa palavra riba, arriba, que vai dar rive e rivière, «margem e rio», originado também a palavra ribanceira[3] e os morabitinos, não esquecendo a nossa palavra muito usada, Arrábida.
Em frente a Rabat, aliás, Ribat, está a cidade de Salé, mais ou menos como Almada fica frente a Lisboa. O nome tem a ver com a nossa palavra sala, pois era a antecâmara de Ribat; foram os franceses que mais uma vez deturparam tudo, como antes tinham feito com Casablanca, que tem mesmo a ver com uma famosa casa branca que se destacava na paisagem nos anos de quinhentos. Estes dados merecem ser levados em conta, pois estou a basear-me numa publicação oficial do turismo marroquino, onde era dito que embora o rei se atribuísse descendente de Maomé, nada havia que o comprovasse realmente.
Vem a propósito evocar o nome árabe para designar a palavra rio, uade, oued ou odi, e mesmo guade, elementos que estão presentes em muitos [potamónimos] portugueses: Odivelas, Odeceixe, Guadiana, Odiáxere.
Outra curiosidade: em 1986, numa das minhas viagens de serviço a Marrocos acabei por ir parar um fim de semana a El Ayoun, capital do chamado Sara Ocidental, desde há décadas ocupado por Marrocos. No sábado foi-nos comunicado que nessa noite éramos convidados pelo Governador local para participar na boda de casamento de uma das sobrinhas. Um bocado contrariados porque já sabíamos que não íamos ter cerveja ou vinho ao jantar, lá fomos, e até acabámos por gostar das iguarias servidas com requinte.
Após o banquete, foi-nos anunciado que íamos assistir a um descante, assim mesmo, um descante. E veio o descante: era, nada mais nada menos do que um descante à moda da minha terra na Beira Alta.
Cantigas ao desafio ente um homem e uma mulher e pelos sorrisos havia brejeirice pela certa tal como na minha aldeia serrana. Nitidamente, suponho que a própria palavra cante, tão cara aos alentejanos, venha daqui[4].
Das palavras árabes presentes no português contemporâneo, a maioria é de substantivos concretos, embora haja também verbos, como afagar, alguns adjetivos, como mesquinho, além de algumas poucas interjeições como arre e oxalá, que deriva de wa xā ’llāh («e queira Deus»), e do interessante caso da preposição até, única palavra gramatical árabe no português, que deriva de ataa.
Digna de nota também é a palavra aljamia, cuja importância é ressaltada por Houaiss (1986, online): «Há uma palavra sagrada, para esse tipo de estudo: é a palavra aljamia, que significa, ao pé da letra, «a [língua] estrangeira»; mas aljamia era empregada em dois sentidos: era o português, do ponto de vista árabe, ou era o árabe, do ponto de vista português. A palavra é ambígua, mas de riqueza crucial, porque, nela também, há elementos graças aos quais se pode fazer toda essa cronologia da entrada das palavras árabes no português. Igualmente notável é a palavra algaravia, que hoje significa «gritaria», «confusão», mas que, na época da ocupação árabe no atual território português, significava «a língua árabe», e que um tempo após a reconquista recebeu o novo significado pelo facto de que o árabe não fazia mais parte do quotidiano português e era, portanto, algo ininteligível.
Por tudo isto é que temos de estar de acordo com o professor Abdelilah Suisse, do Centro de Línguas da Universidade de Aveiro, quando diz: «Acreditamos que o estudo dos arabismos numa perspectiva interdisciplinar – na qual os contextos históricos fundamentem a explicação dos fenómenos linguísticos – poderá contribuir para relatar muitos aspectos da coexistência entre cristãos e muçulmanos, alicerçada na tolerância religiosa e respeito pelas leis e costumes de cada povo, como, de resto, foi testemunhado por vários documentos históricos e que, seguramente, será corroborado por outros que ainda estarão por descobrir e estudar.»
Oxalá, portanto Queira Deus, não se tenham aborrecido muito com estas minhas parangonas, e que o anseio deste investigador o leve a bom porto.
1 N. E. – Não é certa a atribuição de granada ao árabe. A etimologia consagrada é latina ou românica, como se regista no Dicionário Houaiss: «[do] francês grenade (c1165) "romã", por extensão metafórica, (1558) "projétil", este provavelmente emprestado dos dialetos do Norte da Itália: pum graná, pom granat, pom graná (pomo em substituição a melo "maçã" na locução melo granato "romã", do latim malum granatum "id.", literalmente "maçã com grãos").» Ao português romã, também se tem atribuído origem latina (cf. Dicionário Houaiss e Infopédia), mas atualmente torna-se cada vez mais plausível a origem no árabe andalusi rummána, variante do árabe clássico rummānah, com o mesmo significado, palavra que remontará a um vocábulo do hurrita, uma língua extinta que, na Antiguidade, era falada do sul da Turquia ao norte da Síria e da Mesopotâmia (cf. Federico Corriente, Diccionario de Arabismos, 1999). Acrescente-se que, na diaeltologia portuguesa, há registo de milgrada, um sinónimo de romã parcialmente relacionado com granada.
2 N. E. – É muito discutível a explicação segundo a qual bica, na aceção de «café», termo empregado em Lisboa e noutras regiões de Portugal, tenha origem na frase publicitária «beba isto com açúcar. Cf. "Bica, novamente".]
3 N.E. – Riba não vem do árabe, mas sim do latim, de rīpa, ae, «margem (em geral de rio), costa, litoral». Arriba e ribanceira formaram-se em português também com base no radical latino de rīpa [cf. Infopédia + Dicionário Houaiss.
4 N.E. – A palavra cante é uma variante de canto, um derivado do radical do verbo cantar, que tem origem latina. É de notar que em castelhano também se regista cante, como nas expressões «cante flamenco» e «cante hondo/jondo», conforme se pode confirmar no dicionário da Real Academia Espanhola, no qual se relaciona cante com cantar.
[Artigo atualizado em 28/05/2024.]