«A norma é o registo mais neutro do uso, uma espécie de modelo, de padrão (norma padrão), de grau zero da língua.»
Há uns anos, dei aulas de Didática, no Ramo Educacional da FLUL, a estudantes licenciados que pretendiam tornar-se professores de português do 3.º ciclo do ensino básico e do secundário. Começava o semestre com o seguinte tópico para discussão: «Se os alunos já sabem falar português, até já quase completaram a sua aquisição e se até já aprenderam ler e escrever, o que é que um professor de português como língua materna terá para lhes ensinar?»
Enumeravam-se diversos conteúdos e competências – literatura, gramática, falar e escrever melhor ... Eu terminava invariavelmente a afirmar que ao professor de português língua materna compete veicular a norma padrão da língua. A afirmação não era aceite pacificamente: alguns defendiam que a escola deveria respeitar a variação linguística, a liberdade de expressão, que o essencial seria os jovens expressarem-se e não como, que deveria ser democrática e não preconceituosa e repressora.
A argumentação dos meus estudantes é a priori louvável. Ninguém almeja uma escola castradora, silenciadora, mas antes inclusiva, onde todos os alunos se sintam parte de uma comunidade de iguais. Essa aparente liberdade de expressão na escola não tem, porém, o pretendido efeito libertador e, a posteriori, não os torna iguais, mas antes promove a discriminação, limita a igualdade de oportunidades e perpetua a estratificação social.
O assunto não é pacífico, mesmo entre professores e linguistas. Então, porque penso assim?
Veicular a norma não implica silenciar a variação linguística, bem pelo contrário. É importante ensinar que a língua é composta de variação, que todas as variedades resultantes são legítimas, mas mais ou menos adequadas às diferentes circunstâncias de uso. Não me incomoda, e.g., o registo usado por muitos estudantes nos corredores ou bares da faculdade, até porque não contém palavras ou expressões que eu desconheça; o que me incomoda é que não entendam que, no espaço da escola, onde circulam pessoas que não são seus pares, aquele registo linguístico não é o mais adequado; ainda mais me perturba que não conheçam o registo adequado à sala de aula. Não é uma questão linguística; é antes uma questão social.
O indivíduo deve ser capaz de escolher a variedade mais adequada a cada contexto ou ao seu propósito comunicativo – em algumas situações, o uso de calão pode ser mesmo o mais adequado. No entanto, para ter verdadeira liberdade de escolha, é necessário que ele conheça e possa avaliar as alternativas em jogo. Um indivíduo que apenas seja capaz de expressar-se em registos informais não tem, de facto, liberdade de escolha. Não tem escolha sequer.
A norma é o registo mais neutro do uso, uma espécie de modelo, de padrão (norma padrão), de grau zero da língua. É o registo adequado e aceite em qualquer situação de comunicação, seja ela formal ou informal. Não é por acaso que, quando estudamos uma língua estrangeira, aprendemos essencialmente a sua norma padrão: não pertencendo à comunidade de fala dessa língua, não podemos avaliar a adequação dos registos às situações de comunicação. O conhecimento da norma, de preferência explícito e por comparação com as demais variedades, confere maior segurança e expõe-nos a menos riscos de inadequação linguística e social.
Não nascemos todos em berços iguais. Num regime democrático, a escola pública deve funcionar como nivelador social e a escolaridade obrigatória deve fornecer, a todos por igual, um acervo de conhecimentos, competências e atitudes que lhes confiram empoderamento, qualificação e acesso à cidadania. O conhecimento da norma e o seu uso devem, acredito, fazer parte da formação de cidadãos livres e com igualdade de oportunidades, porque lhes permite o domínio eficaz e adequado de todas as situações de comunicação.
Crónica publicada no Diário de Notícias em 14 de julho de 2020.