«O fato de uma criança não dominar a norma linguística padrão não [constitui] empecilho para que se [comunique] com clareza e eficiência.»
A clarividente abordagem de [William] Labov provou, pela metodologia de pesquisa sociolinguística baseada em entrevistas com o informante no ambiente próprio de sua interação social, que as teses de Bereiter-Engelmann não levavam em conta que a capacidade de expressão linguística do falante cinge-se necessariamente à situação discursiva em que ele se encontra. No caso das crianças negras das escolas norte-americanas, evidenciou-se que sua incapacidade de comunicar-se decorria de fatores sociolinguísticos ordinários que se aplicam a qualquer falante, tais como o da assimetria de posições no diálogo entre crianças e adultos ou entre falantes que dominam variantes linguísticas distintas. A prova se obteve em entrevistas com vários informantes tidos como ineptos no ambiente escolar, cuja capacidade de expressão revelou-se normal ao conversarem com pessoas de mesma origem social ou que dominavam a mesma variante linguística
Em última análise, Labov provou que o fato de uma criança não dominar a norma linguística padrão não constituía empecilho para que se comunicasse com clareza e eficiência. No ambiente original de sua interação linguística, as crianças negras americanas, que nada tinham a dizer sobre as coisas em geral na escola, eram falantes loquazes, que conseguiam dizer absolutamente tudo que queriam e se faziam entender perfeitamente. Tal demonstração trouxe consequências decisivas ao projeto pedagógico dos anos 90, que passou a acatar as variantes de desempenho linguístico menos prestigiadas como uma característica normal do falante, de tal sorte que sua integração no ambiente escolar se processasse com naturalidade.
Em pesquisa análoga, o sociolinguista Wallace Lambert (1967), que se tornou conhecido pela aplicação de uma metodologia de análise conhecida por matched-guise technique – procedimento que avalia atitudes dos falantes de línguas distintas ou de variantes de uma dada língua quando em contato discursivo –, concluiu que cada falante faz julgamentos e trabalha com estereótipos sociais exclusivamente formados pela avaliação inconsciente da forma de falar dos indivíduos. Esses estereótipos exercem um papel decisivo em situações de comunicação «face a face», como entrevistas de trabalho, petições a autoridades, juízos etc. A consequência atestada é de que as decisões tomadas estão fundamentalmente baseadas na forma de falar do interlocutor (incluindo o léxico, as estratégias retóricas utilizadas, a construção de frases do discurso etc.) e não na efetiva justeza de seus argumentos.
Importante salientar que as ideias de Labov aqui referidas não advogam a tese de que é dispensável o domínio da norma linguística padrão no seio da sociedade. Suas conclusões, a rigor, atestam tão somente que a falta desse atributo não constitui empecilho para a aprendizagem nos primeiros anos da vida escolar. Decerto que, com o natural progresso individual que usufrui o educando, seu desempenho linguístico passará a ser diversificado, ampliado, de tal sorte que nele se cria uma imperceptível capacidade discriminatória dos usos em face das várias situações e ambientes discursivos que se lhe apresentam no cotidiano.
O que se quer aqui afirmar é que a formação plena para o exercício da cidadania implica conferir ao indivíduo capacidade de expressar-se clara e adequadamente como ator do drama social. A questão é que quem estabelece as regras do desempenho linguístico não é o indivíduo, senão o grupo. Essa é uma questão de fundo, que muito se discute no campo da mudança linguística e cujo reflexo atinge temas delicados, tais como o do preconceito e da discriminação em face das variantes de usos. Não são raros os exemplos de discriminação e má avaliação individual em face do desempenho linguístico em desacordo com uma norma estabelecida pelo grupo majoritário.
Um exemplo que se pode aferir no Brasil diz respeito a características fonéticas mais salientes, tais como a do r retroflexo, comumente conhecido como «r caipira», que decerto afastou muitos jovens interioranos das classes escolares da capital federal até meados do século 20. Eram crianças que se viam obrigadas a despir-se de sua natural formação linguística para adequar-se a ferro e fogo aos padrões de uma outra variante prosódica do português que gozava de maior prestígio no ambiente escolar. E, se não o conseguiam, eram discriminadas a ponto de terem de abandonar os estudos na capital e voltar para sua região de origem. O exemplo revela o grau elevado de intolerância com as diferenças linguísticas no meio escolar, fruto de uma visão monolítica do desempenho linguístico que decerto se deve combater com a serenidade necessária, sem rompantes de exacerbada demagogia.
Se quisermos efetivamente eliminar a chaga do preconceito linguístico, devemos partir de algumas premissas normalmente desconsideradas pelos inúmeros textos que se vêm dedicando ao assunto (cf. Perini, 1997; Bagno, 2008; Faraco, 2008), de que decorre uma escamoteação da verdadeira natureza desse sério problema que deve ser combatido sem trégua, mas também sem rancor. A primeira dessas premissas é a de que a sociedade impõe o uso de normas linguísticas distintas em face de atos discursivos distintos, ou seja,existe no âmago da sociedade uma inter-relação entre linguagem e comportamento social que está na sua própria concepção como organismo. Se considerarmos que os atos de fala devem ser entendidos como situações de comunicação social com um propósito comunicativo específico determinado pelos falantes, seria simplório admitir que qualquer registro de desempenho linguístico se adequasse à pluralidade de atos que se sucedem no cotidiano. Como igualmente simplório será admitir que um dado registro ou desempenho de uso será sempre válido e acatado pelo grupo social na construção de todos os atos de fala, pois isso contrariaria a própria natureza diversificada da comunicação social. Nessa perspectiva, a inclusão social pelo ensino implica preparar o indivíduo para o jogo diversificado dos atos de fala que a sociedade contempla.
Segunda parte de uma reflexão publicado no mural Língua e Tradição em 10 de novembro de 2024, no Facebook.