« (...) Devido ao empobrecimento da educação [no Brasil], temos cada vez mais pessoas de nível superior que não dominam a norma e, por isso, escrevem simplesmente mal. (...)»
O português brasileiro, em sua modalidade popular falada, difere muito da escrita culta e distancia-se bastante das correspondentes modalidades lusitanas. No entanto, quando se analisa uma língua, é preciso ter claro de qual espécie de língua se está tratando.
O português engloba necessariamente as variedades de todos os países lusófonos, tanto em registro formal quanto informal. Especialmente quando se estuda um idioma como expressão cultural de um povo, é a língua padrão, isto é, a modalidade culta, que se tem em mente: é ela que se ensina nas escolas (até aos estrangeiros), é ela que se usa em documentos, jornais, revistas, livros, programas mais “sérios” de rádio e TV (nos de entretenimento, a linguagem é mais livre).
É a modalidade culta, enfim, o modelo mental que temos de uma língua (quando penso no francês, são as obras da literatura que me vêm à mente e não a fala dos operários senegaleses numa construção civil de Paris).
O português brasileiro falado evoluiu muito e tornou-se uma língua com características que, em certos casos, pouco têm em comum com outras línguas românicas.
A norma-padrão, regulada pela gramática normativa, também evolui, em ritmo bem mais lento, e, quando o faz, em geral adota usos da língua popular que se consagraram em textos formais.
A rejeição à mesóclise, por exemplo, já ocorre há mais de um século na fala; desde algum tempo, também é praxe entre nossos melhores jornalistas e escritores.
Isso não quer dizer, contudo, que o padrão culto deva incorporar toda e qualquer inovação popular.
Uma coisa é reconhecer que nossa gramática normativa é anacrônica, complicada, ilógica e precisa urgentemente ser repensada (sobretudo num momento em que a língua portuguesa começa a se internacionalizar, uma revisão da gramática com vistas à sua simplificação e racionalização seria muito bem-vinda – como ocorreu com as gramáticas de outras línguas latinas, como o espanhol e o italiano). Outra coisa é dizer que o português popular deve ser elevado à condição de língua padrão.
Devido ao empobrecimento de nossa educação, temos cada vez mais pessoas de nível superior que não dominam a norma e, por isso, escrevem simplesmente mal. E não apenas em termos gramaticais ou ortográficos, mas têm vocabulário pobre e dificuldade de organizar ideias de modo coeso e coerente. Até alguns jornais e revistas trazem textos mal escritos. Isso sem falar em contratos, relatórios, projetos, certidões, etc.
Em todo caso, é possível reconhecer nesses textos características do português brasileiro contemporâneo – provavelmente porque o redator, não sendo proficiente na escrita formal, escreve como fala.
Isso significa que a língua culta formal já simplificou a concordância, não usa mais o futuro simples, aboliu o hífen? Claro que não! Se tomarmos um texto escrito em latim medieval, veremos que a gramática e o vocabulário desse período eram mais pobres do que no período clássico, e que havia construções que já prenunciavam as línguas vulgares.
Isso não representou uma evolução do latim, como se poderia pensar; na verdade, o que isso representa é a tentativa de escrever em latim por indivíduos que já não eram falantes nativos do idioma e, portanto, não o dominavam por completo. O que se tem aí não é evolução, é involução.
É evidente que o português brasileiro evolui, mesmo em sua forma culta. Mas não se pode confundir a evolução do idioma padrão pela incorporação consciente e sensata de usos contemporâneos da língua falada com a produção textual deficiente resultante da falta de estudo. Seria como dizer que pessoas flageladas pela subnutrição constituem uma forma evoluída da espécie humana.
Apontamento do linguista brasileiro Aldo Bizzocchi, que o publicou no dia 8 de novembro de 2020 na sua página no Facebook, Língua e Tradição.