«Quanto mais escolarizado, quanto mais letrado, quanto mais culto for um indivíduo, mais ele usará as múltiplas formas linguísticas à sua disposição [...].»
A Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, de Marcos Bagno, é recheada de afirmações bem contestáveis cientificamente.
Ontem, no capítulo 4 de seu livro, descobri mais uma absurdidade. Diz ele:
«A economia de recursos também incide sobre o domínio dos tempos verbais. Diante da existência de dois pretéritos mais-que-perfeitos, um simples e um composto, os falantes abrem mão do simples e empregam, na interação oral, EXCLUSIVAMENTE o tempo composto, de modo que formas como fizera, faláramos, conhecêramos, perdoara" etc. NUNCA ocorrem na fala espontânea, a não ser com objetivo humorístico.»
Segundo o linguista, o pretérito mais-que-perfeito simples (ex.: falara) NUNCA ocorre na fala espontânea dos brasileiros, usando estes apenas a forma analítica (ex.: tinha/havia falado).
Será mesmo? Será que a forma simples do pretérito mais-que-perfeito realmente está morta e enterrada no português brasileiro falado, ou seja, NÃO ocorre nem sequer uma vez na boca de um brasileiro?
Então clique aqui e ouça um espontâneo fizera a partir dos 4:20:
https://youtu.be/zQWdD76GYr0?si=RP8tyqDHoQPQ6red
Ou aqui, um espontâneo tivera, aos 1:03:43:
https://youtu.be/dH51dnhUOiw?si=T5Lme6c5L_F0wzWJ
Se achar insuficiente, então recomendo este excelente artigo científico sobre o assunto: "O pretérito mais-que-perfeito simples no português europeu e brasileiro: o começo do fim?" (2013), de Joalêde Gonçalves Bandeira.
Pois bem... Como existem cerca de 15 000 verbos na língua portuguesa, segundo o Dicionário Houaiss de Conjugação de Verbos, investiguei apenas três verbos – se você quiser pesquisar os outros milhares, fique à vontade.
Usei o ótimo youglish.com/portuguese para esse fim, filtrando o que era citação/leitura de fala espontânea. Uma vez que a tecnologia do site não distingue acentos gráficos (perdoara x perdoará), que diferenciam um tempo verbal do outro, fiz uma brevíssima pesquisa sobre três verbos irregulares na 3.ª pessoa do singular (fazer, ter, dizer), cujas ocorrências encontradas foram estas: fizera (5), tivera (3), dissera (1). Eis a comprovação: diferentes brasileiros usaram, em sua fala, o pretérito mais-que-perfeito simples.
– Ah, Pestana, mas meia dúzia de brasileiros não podem ser contados como formadores do «vernáculo geral do português brasileiro».
Se você leu o artigo sugerido acima, sabe que não é meia dúzia... Mesmo assim, levanto três reflexões:
1. Podemos continuar afirmando que NUNCA se usa o pretérito mais-que-perfeito simples na modalidade falada do português brasileiro, ou seria mais prudente afirmar que RARAMENTE se usa tal conjugação verbal?
2. E se expandíssemos essa pesquisa, analisando todas as formas verbais do pretérito mais-que-perfeito dos cerca de 15.000 verbos da língua portuguesa num corpus gigantesco de vídeos, encontraríamos mais ocorrências na fala espontânea dos brasileiros cultos?
3. Ainda que supostamente 99,99% dos brasileiros não venham usando o pretérito mais-que-perfeito simples na fala espontânea, isso implica a COMPLETA INEXISTÊNCIA dessa forma verbal, revela uma tendência de desaparecimento ou só indica uma baixíssima frequência de uso?
Quanto mais escolarizado, quanto mais letrado, quanto mais culto for um indivíduo, mais ele usará as múltiplas formas linguísticas à sua disposição – inclusive aquelas ditas inexistentes na fala, mas encontradas amiúde no registro culto escrito, as quais amplificam seu repertório oral.
Essa postura de asseverar, categoricamente, que o pronome cujo, o verbo no futuro do presente simples, o verbo no pretérito mais-que-perfeito, a mesóclise, a voz passiva sintética etc. pertencem exclusivamente (!) à modalidade escrita e nunca (!) são usadas na fala não só me parece irresponsável como também está longe de ser estritamente científica.
Decretar a morte de palavras e formas linguísticas no português brasileiro é ignorar duas coisas: os usos ativo e passivo da língua e a existência de mais de 210 milhões de brasileiros, potencialmente preparados para cantar a música Álibi, de Djavan.
Artigo de opinião incluído no mural Língua e Tradição (Facebook, 09/03/2025).