« (...) Sabe aquela sensação de querer saber o certo, aquela sensação deôntica (do "dever ser" assim, e não assado)? (...)»
– Mas como é que se diz mesmo aquela frase?...
– «As crianças se entreteram»?
– Não, pô... Talvez... Hmmm... Acho que não... Qual é o correto? Como é que é que se diz essa frase aí corretamente? Sei que não é isso aí, não.
– Cara... Então eu acho que é... «As crianças se entreteviram».
– Será?... Esquisito.
Aí chega a Carlinha... e pá!:
– Gente, o certo é ENTRETIVERAM.
Os caras:
– Cara***o! É isso mesmo. ENTRETIVERAM. Valeu, Carlinha!!!
..........................
Sabe aquela sensação de querer saber o certo, aquela sensação deôntica (do «dever ser» assim, e não assado)?
Pois bem...
Assim disse o linguista Eugenio Coseriu numa entrevista em 1997:
«Cada atividade tem sua própria ética, e faz parte da ética da linguagem não apenas falar de uma maneira que se entenda, mas falar da melhor maneira possível.»
É curioso como o ser humano (sobretudo quando letrado e culto) almeja e busca, naturalmente, a melhor maneira de falar, a melhor maneira de escrever, a melhor maneira de usar a língua, uma espécie de ideal linguístico, que não é uma abstração, mas uma busca pelo esmero, pela polidez da língua, a fim de não só comunicar, mas fazê-lo em sua forma modelar, exemplar. (É óbvio que não em todas as situações de comunicação, claro.)
Quando um usuário da língua diz «Qual é o correto?», o que ele quer saber, de fato, não é «qual é a ÚNICA forma possível de falar tal palavra», e sim qual é a forma socioculturalmente idealizada (eleita e acolhida pela sociedade numa espécie de adesão majoritária), o tão almejado "padrão"... ainda que ele não tenha plena (cons)ciência disso.
Ou seja, o falante intuitivamente SABE que existem diversas maneiras de falar sua língua, levando-se em conta dezenas de variáveis, como a pessoa com quem ele está falando e o ambiente em que ele está. Mas, quando se pergunta «Qual é o certo?», ele tem em mente um juízo de valor «daquela forma ideal», isto é, aquela forma linguística (repito) socioculturalmente idealizada – eleita e acolhida pela sociedade numa espécie de adesão majoritária como a «forma ideal», ou seja, a forma standard, a quintessência acima de todas as outras formas regionais, sociais, situacionais.
É justamente aí que entram as famigeradas «gramáticas normativas tradicionais», que registram em si o conjunto de usos linguísticos tomados como exemplares, usados pelos homens mais cultos duma sociedade – a saber: seus escritores, os quais preservam e sedimentam a tradição linguística, que se estabilizou como ideal de uma língua de cultura por bons séculos.
É por isso que assim disse o gramático Evanildo Bechara sobre esse grande repositório de usos linguísticos ideais:
«Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos recomendados como modelares de exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio social... segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos.»
– Ah, Pestana, mas não se pode hierarquizar os usos linguísticos. Cada um deve simplesmente falar a sua língua como ela é, sem um padrão pré-estabelecido por A ou B. É retrógrado esse lance de «norma ideal», que é uma norma de ninguém.
Mas o ponto é precisamente este: por não ser de "ninguém", é de/para todos, porque está acima de todos. Pense nisso.
Finalizo com um trecho do texto A língua literária, de Eugenio Coseriu:
«O liberalismo linguístico é, no fundo, um falso liberalismo; não promove a liberdade, mas sim o arbítrio. E não é, como alguns pensam (ou dizem sem pensar), uma atitude "progressista", "tolerante" e "democrática", mas sim uma atitude reacionária e profundamente antidemocrática, já que ignora a dimensão deôntica da linguagem (ignora e despreza a aspiração a falar "melhor" e "como os melhores", aspiração genuína de todo falante consciente do seu ser histórico) e aceita tacitamente a exclusão dos falantes de modalidades não exemplares da cultura maior da nação. Em suma, parafraseando uma sentença de Ortega [y Gasset]: muito pior do que as normas rigorosas é a ausência de normas, que é barbárie.»
Apontamento do gramático brasileiro Fernando Pestana publicado no mural Lingua e Tradição (Facebook, 04/06/2023).