«(...) A proclamação do direito de acesso à informação parece fazer sentido principalmente para países pobres ou em desenvolvimento, com regimes totalitários ou formas incipientes de democracia, caracterizados por elevados índices de iliteracia e mesmo de analfabetismo (...).»
Em 2019, a 74.ª Assembleia Geral da ONU proclamou o dia 28 de setembro como Dia Internacional do Acesso Universal à Informação, seguindo passos dados, em 2015, pela Conferência Geral da UNESCO. Neste insólito ano de 2020, não poderíamos deixar de questionar a natureza do acesso à informação e o seu papel.
A proclamação do direito de acesso à informação parece fazer sentido principalmente para países pobres ou em desenvolvimento, com regimes totalitários ou formas incipientes de democracia, caracterizados por elevados índices de iliteracia e mesmo de analfabetismo, pela incapacidade de prover às necessidades básicas dos cidadãos e pela falta de acesso a tecnologia digital. Quando pensamos em países desenvolvidos como os europeus, tal celebração pode parecer supérflua e até anacrónica. Mas não é.
Conseguimos construir o maior acervo de informação que alguma vez existiu e fazemos parte da geração que, em toda a história da humanidade, mais acesso tem à informação, pela vida em democracia, pela escolarização e a literacia, por toda a tecnologia ao nosso dispor, resultante de importantes investimentos feitos em ciência, tecnologia e infraestruturas imprescindíveis à digitalização da informação. O acesso à informação parece hoje um dado adquirido. Mas não é.
A mesma tecnologia digital, que tão fundamental é no acesso à informação, tem sido, por desleixo e por desígnio, corrompida. A "realidade", putativamente gratuita e ao alcance de um clique, é filtrada e concebida para desinformar, confundir, dividir e levar a agir irracionalmente, corroendo a cidadania e as bases mesmas da sociedade. A objetividade informativa deu lugar a publicidade enganosa e a informação que nos envolve está inquinada de mentiras repetidas à exaustão, de crenças dadas como factos verdadeiros, de ataques ao conhecimento e à ciência, de violações grosseiras de princípios e valores que considerávamos universais e estáveis. Há saída?
Vivemos numa sociedade da informação, mas muito nos falta para construir uma sociedade do conhecimento, i.e. uma sociedade de indivíduos capazes de avaliar e selecionar a informação a que têm acesso, de a processar, de inter-relacionar os dados, de melhor fundamentar decisões, escolhas e atitudes. Adquirir conhecimento é uma construção individual, para a qual a família, a escola e a sociedade contribuem a níveis diferentes.
Quando falamos de informação, falamos sobretudo de escrita e, inevitavelmente, de literacia. Aceder à informação implica saber como o fazer e querer fazê-lo, i.e. implica literacia plena, nas suas mais variadas expressões. O acesso à informação não é dado, é conseguido. Tal como a leitura, não é passivo; mas antes laborioso. A realidade que nos rodeia não é alheia a nenhum de nós, mas o resultado da visão e do contributo de todos. O acesso à informação é imprescindível a uma sociedade do conhecimento mais plena e inclusiva, mas esta requer o esforço de cada um para se tornar mais conhecedor, informado e consciente, assim como a determinação em ser cidadão pleno, participante, agente do crescimento e da mudança.
Artigo da linguista Margarita Correia publicado em 26 de setembro de 2020 no Diário de Notícias.